observador.ptObservador - 19 jun. 00:05

Abortados da nossa dormência…

Abortados da nossa dormência…

Chama-se ‘filho’. Mas não querem dar-lhe este nome, pois dá-lo importunaria. É, por isso, a ‘coisa que a mulher tem dentro de si’, é ‘o montão de células’.

Muito do drama humano nasce do contraste entre a sua grandeza e a indigência do seu reconhecimento. A humanidade que nos habita nem sempre se torna luminescente para aqueles que a querem ofender. Aliás, a história tem sido pródiga em narrativas de redução do humano para sobre ele exercer toda a violência. Assim com os escravos, assim com os infiéis, assim com os doentes, assim com os deficientes, assim com os outros… Com todos os outros.

Hoje, o outro habita no mais íntimo de alguém e chama-se ‘filho’. Mas não querem dar-lhe este nome, pois dá-lo importunaria. É, por isso, a ‘coisa que a mulher tem dentro de si’, é ‘o montão de células’ ainda não humanas, é tudo, mas sem ser o que é.

Porque, se o fosse, outra teria de ser a atitude perante ele. E isso incomoda.

Tem, por isso, de continuar a ser uma coisa. Porque uma coisa utilizamos e rejeitamos. Uma coisa pode, até, ser utilizada, rejeitada e retomada: interrompida no seu uso e retomada, mais adiante. Mas um humano não pode ser tratado assim. Por isso, cabe anestesiarmo-nos sob a capa segura de que temos o direito a rejeitá-lo pois, afinal, é uma parte de nós que não queremos. Mas não pode ser um de nós.

Até ao dia… Até ao dia em que despertarmos do sono e virmos, ainda meio zonzos do torpor em que andávamos, que ecoa uma pergunta: ‘Como foi possível que nos tivéssemos deixado enredar em tantos cantos de sereias que nos queriam afastar do regresso a Ítaca?’ A Ítaca da humanização, a Ítaca em que somos humanos, em que sermos humanos nos faz acolhidos, recebidos e, acima de tudo, reconhecidos no que somos.

‘Como foi possível que, sabendo tanto sobre quem era o filho que em nós se gerava, pudéssemos tudo buscar para esmerilar os melhores (pelo menos, mais ruidosos) argumentos para nos esquivarmos a fazer o que devíamos: receber aquele que de nós dependia, exclusivamente?’

‘Como foi possível? Como foi possível?’

Mas, enquanto a pergunta não é suficientemente pungente, cabe a alguns garimpeiros continuar a separar o ouro dos escolhos, garantindo que há ouro onde outros não veem mais do que detritos.

A garimpa é sempre dura, mas é dela que nasce a verdadeira riqueza. Quem desiste terá de se bastar com os escolhos da vida.

Mas até quando durará a paciente busca entre os escolhos?

Quando virá o dia em que abortaremos, por fim, esta longa gravidez de uma dormência coletiva? Essa é a única gravidez não autêntica: a gravidez de um nado morto, morto desde sempre – gravidez de uma lógica que nos obscurece o olhar e nos centra em nós como se o outro não se nos parecesse indigente do nosso cuidado. Carecer do nosso cuidado não faz dele legítima vítima da nossa agressão, mas credor do nosso acolhimento.

Os tempos vindouros dirão, admirados, que uma anestesia coletiva tomara conta da humanidade. Acordaremos a tempo de não ser já demasiado tarde?

Entretanto, no seio silencioso das suas mães, cada rosto ainda não visto, cada nome ainda não pronunciado escreve os primeiros rabiscos da sua biografia. Nenhuma biografia dos que andam erguidos sobre a terra se fez sem esses tempos discretos e silenciosos. E quanto do que são depende desse lugar e tempo!

Dêmos um nome, imaginemos o seu rosto e jamais ousaremos apagar esses primeiros rabiscos biográficos.

Continuemos a garimpa. O ouro brilhará dos escolhos…

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