Joana Andrade - 18 jun. 15:49
Entre a luz de Abraão e as trevas de Khomeini
Entre a luz de Abraão e as trevas de Khomeini
O que os líderes árabes recusavam, desde o início, não era uma política ou uma fronteira: era a própria ideia de uma soberania judaica na região, fosse ela qual fosse.
“ Paradoxalmente, os Estados vizinhos (como a Síria, o Líbano, o Iraque ou a Jordânia) foram todos criados a partir dos mesmos mecanismos mandatários impostos pelas potências coloniais, partilhando a mesma origem artificial e exógena – “colonialista” e “imperialista”, segundo a gramática em voga – que constantemente se imputa a Israel. A sua soberania e legitimidade, embora decorrentes de arranjos coloniais ou sob tutela imperialista, nunca foram postas em causa, muito menos objectos de rejeição existencial.
A Jordânia é, aliás, um caso emblemático. Segundo conta a anedota histórica, foi “com um simples traço de caneta (stroke of a pen), numa tarde de domingo no Cairo em 1921” que Winston Churchill terá criado o Mandato Britânico da Transjordânia (hoje conhecido como o Reino Hashemita da Jordânia). Anos mais tarde, Churchill declararia no Parlamento: “O Emir Abdullah está na Transjordânia, onde o coloquei numa tarde de domingo em Jerusalém”. De resto, basta contemplar a linha ziguezagueante da fronteira oriental da Jordânia com a Arábia Saudita para perceber por que razão lhe chamam, com ironia, “o soluço” ou “o espirro” de Churchill (Winston’s hiccup, Churchill’s sneeze). Soluço imperial ou espirro colonialista, ninguém contesta, contudo, a soberania dos jordanos. A dos judeus – apenas a dos judeus –, sim.
A recusa árabe, que não nascia de uma luta contra o colonialismo enquanto tal, carrega uma genealogia mais profunda, enraizada na história simbólica da própria negação. Quando, no século II, o imperador Adriano esmagou a revolta de Bar Kokhba, não se contentou com a vitória militar. Rebaptizou Jerusalém como Aelia Capitolina, proibiu a entrada dos judeus na cidade e enterrou o nome da Judeia debaixo de uma designação punitiva e humilhante chamada Syria Palaestina, visando romper assim o vínculo entre um povo e o seu território. Inscrita no mapa imperial, uma damnatio memoriae que dura até hoje. A palavra Palestina, hoje como ontem, designa não a afirmação, mas a negação, de uma soberania: a dos judeus.
É essa operação simbólica que reverbera nas catacumbas do discurso político que, nos nossos dias, recusa a legitimidade de Israel, o Judeu Colectivo Soberano. Da Roma antiga à Roma moderna, dos t��neis de Sinwar aos mísseis de Khomeini, dos brados fanáticos de “Morte a Israel!” aos cânticos coreografados que exigem uma Palestina livre “do rio ao mar” (versão adocicada para palatos ocidentais da fórmula árabe Min il-ṃayye la-l-ṃayye, Falasṭīn ʿarabiyye: “Da água à água, a Palestina é árabe”), o conflito revela a sua verdade não na dimensão territorial, mas existencial. Quando, quase dezanove séculos depois, se ouve, nas avenidas mais centrais e nas universidades mais prestigiadas, o slogan “From the river to the sea”, torna-se impossível não reconhecer aí o eco longínquo, mas ininterrupto, do gesto de erradicação – póstumo, mas ainda vivo – de Adriano.
O que se contesta, na verdade, não é o que Israel faz, mas o que Israel é: judeu. Não é a ocupação que incomoda, é a existência: judaica. O que verdadeiramente perturba não é que o judeu seja agressor, mas que seja senhor do seu destino. Para muitos, de ontem e de hoje, o judeu permanece tolerável apenas enquanto figura submissa, assimilada ou, como não há muito tempo, destinada ao extermínio. É também por isso que o anti-sionismo se tornou o novo batom do velho anti-semitismo, uma espécie de anti-semitismo respeitável, um anti-semitismo de lábios pintados.
E é ainda por isso que o mundo – que nunca foi propriamente um refúgio para os judeus – se apressa, das resoluções da ONU às manifestações “humanitárias”, das chancelarias do Ocidente aos vídeos do TikTok, a condenar o Estado dos judeus: não por matar, mas por sobreviver. O mais chocante, afinal, não é que Israel dispare: é que se defenda. É que dispare na defesa da sua condição – precisamente, crime supremo, arquetípico, sem absolvição – de judeu. O judeu morto, afinal, sempre foi uma inspiração singular e tradicional para poetas e carrascos. Que os judeus tenham deixado de inspirar listas de Schindler e meninos do pijama às riscas para voltar a inspirar caricaturas e libelos demonológicos saídos directamente dos Protocolos dos Sábios de Sião, é talvez o sinal mais claro dessa evolução: o judeu, finalmente soberano, é ainda mais intolerável do que o judeu exterminado.
A longa guerra do Irão contra Israel deve ser entendida como parte integrante dessa mesma genealogia sombria de negação. O regime dos ayatollahs, Adrianos de turbante envoltos numa escatologia totalitária, fez da negação de Israel o seu dogma fundador. A sua hostilidade não é resposta a políticas concretas, mas à própria presença dos judeus como entidade soberana numa região em que – histórica e teologicamente – deviam ser apenas submissos. Os proxies de Khomeini – Hamas, Hezbollah, Houtis – não são, como a comunicação social ocidental gosta de romantizar, movimentos de resistência, mas extensões armadas dessa teologia da aniquilação. O ódio que os anima é anterior a qualquer mapa e independente de qualquer concessão territorial. Israel, que sempre fez a paz quando teve parceiro com quem fazê-la (Egipto e Jordânia, desde logo; mais recentemente, no contexto dos Acordos de Abraão, os Emirados, o Bahrein, o Sudão e Marrocos), representa menos de 0,002% do território do mundo islâmico. Não, nunca foi sobre território. A bandeira dos Houtis não deixa, senão para os idiotas úteis ocidentais, sobretudo com qualificações superiores, grande margem para dúvidas: nela se inscreve, sem eufemismos, a negação: “Morte a Israel” e, não por acaso, “Maldição aos judeus”.
O conflito entre judeus e árabes não começou com a vitória de 67, nem com a fundação de 48. A sua raiz remonta a um ponto anterior e mais profundo: à rejeição inaugural da própria existência de uma soberania judaica na terra de origem dos judeus. Como, em 1947, reconheceu o anti-sionista Ernest Bevin. Neste sentido, também o duelo actual entre Israel e o Irão não é, e nunca foi, sobre terra, nem sequer, em última análise, sobre um programa nuclear (que constitui, na verdade, o prolongamento tecnológico do conflito inaugural): é sobre a alma das civilizações. Nos desertos de Dasht-e Kavir e do Neguev, bem como nos céus cruzados de Teerão e de Jerusalém, está em curso um duelo – talvez o duelo final – entre a luz de Abraão e as trevas de Khomeini.
O apelo a Abraão, inscrito nos acordos de 2020, recorda-nos que o ódio não é destino. Sempre que uma nação islâmica consegue romper o ciclo da decadência, da corrupção e da vitimização, descobre que não precisa do Judeu Colectivo como bode expiatório dos seus fracassos e das suas tragédias. Ao contrário do delírio escatológico khomeinista, que oferece às suas populações apenas o martírio, a cela ou a cova – e à região, guerra e ruína –, alguns países islâmicos encontraram, no reconhecimento de Israel e no reencontro com os judeus, não a negação de si mesmos nem a renúncia à sua fé, mas uma chave de ouro para a segurança, a prosperidade e o renascimento.
Pela primeira vez em muito tempo, líderes árabes ousaram romper o ciclo vicioso da recusa, reconhecendo Israel não como intruso, mas como vizinho legítimo. E, mais ainda, como irmão. No nome desses acordos está uma chave hermenêutica profunda, e nada fortuita: Abraão, pai comum de judeus e árabes, símbolo de uma origem partilhada, anterior à divisão e ao ressentimento. O que nos Acordos de Abraão se afirma é mais do que uma reconciliação política: é um reencontro entre herdeiros, um reconhecimento concreto da dignidade soberana do outro. A paz duradoura só será possível quando essa rejeição originária for definitivamente rejeitada. Quando, tendo rejeitado a rejeição, os árabes virem no judeu o irmão reencontrado em vez de o inimigo procurado.
Como costuma dizer, de forma particularmente bela, a intelectual israelita Einat Wilf, o conflito começará a terminar no dia em que os árabes olharem os judeus olhos nos olhos, de igual para igual, de irmão para irmão – e finalmente lhes disserem: “Bem-vindos de volta a casa.”
Eurodeputado eleito pelo Chega