www.publico.ptpublico@publico.pt - 19 jun. 08:10

Se Gaza é Falkenau quem somos nós neste filme?

Se Gaza é Falkenau quem somos nós neste filme?

Aprendemos com os erros e tendemos a olhar para as tragédias da História como irrepetíveis. Mas será que aprendemos de facto? E a nossa sensibilidade perante o abominável? Alterou-se ou mantém-se?

Antes de ser realizador, o norte-americano Samuel Fuller (1912-1997) foi um dos soldados que, em 1945, libertou o campo de concentração de Falkenau, na antiga Checoslováquia. No dia da libertação do campo, Fuller realizou uma filmagem de vinte minutos, onde captou o ritual de homenagem aos mortos, concretizado pela população da aldeia alemã mais próxima. Os seus habitantes viviam nos arredores do campo, mas nunca agiram. Perplexo perante a indiferença destes pelos horrores de Falkenau, o superior de Fuller ordenou à população da aldeia que recolhessem algumas das vítimas, que os revestissem com um sudário, que os transportassem, e que, por fim, honrassem a sua partida, formalizando o acto do enterro ao atirar-lhes simbolicamente pedaços de terra.

Oito décadas depois, tendemos a olhar para o Holocausto como irrepetível, justamente porque o horror vivido entre 1939 e 1945 está bem presente na nossa memória colectiva. Este momento trágico da nossa História foi interpretado e julgado, as ilações foram gradualmente absorvidas pela humanidade, e por isso, assumimos que aprendemos a lição. Infelizmente, o genocídio em curso na faixa de Gaza prova que tal absurdo ainda é possível: não só não aprendemos com os erros do passado, como tendemos a repeti-los, desta vez em directo, mas com a mesma indiferença. Embora alvo de críticas por alguns, as comparações entre a Segunda Guerra Mundial e Gaza têm sido cada vez mais recorrentes, e são de facto compreensíveis. Como afirma o académico italiano Enzo Traverso, no livro Gaza perante a História (Antígona, 2025), “a guerra em Gaza não é a Segunda Guerra Mundial […] mas as analogias históricas — que nunca são homologadas — podem dar-nos orientações, mesmo se os seus actores são diferentes e os acontecimentos são de dimensões distintas” (pp.14-15).

O afastamento geográfico e cultural sempre contribuiu para o olhar distante do ocidente sobre os povos do Médio Oriente. Mas o acesso facilitado à tecnologia e a rápida disseminação de informação veio mitigar a distância. Numa era global bastante diferente, com acesso privilegiado a informação em tempo real, onde todos vigiam todos, seria de supor que os governantes actuais não tivessem qualquer latitude para ser coniventes com as atrocidades perpetradas sobre povos distantes, ou desculpar com condescendência quem as pratica. Era por isso expectável que a União Europeia pressionasse, sem demora e sem pudor, o governo israelita, impedindo as acções militares desproporcionais que ocorrem diariamente em Gaza.

No entanto, a postura recorrente dos vários países europeus tem revelado o oposto: constata-se diariamente nas comunicações dos governantes políticos europeus que lhes é difícil condenar o massacre em curso na Faixa de Gaza, seja por conivência com o governo israelita, que consideram aliado e um parceiro estratégico, ou por desejarem assumir uma aparente neutralidade, de todo incompreensível. O comunicado conjunto do Reino Unido, França e Canadá, classificando o sofrimento em Gaza como “intolerável”, e a resposta militar de Israel “totalmente desproporcional”, não só é extemporâneo, como fica aquém.

O profundo descontentamento que tem surgido no mundo inteiro, com um ímpeto cada vez maior, é prova disso, e não deixa o Parlamento Europeu de fora. Vários eurodeputados têm manifestado, de forma mais feroz do que o habitual, a sua revolta perante a postura institucional do órgão europeu.

A eurodeputada espanhola Irene Montero, por exemplo, dirigiu-se ao parlamento e à alta representante Kaja Kallas, afirmando que esperava que a própria Comissão Europeia fosse julgada futuramente num tribunal internacional pela “cumplicidade com os genocidas”, e o eurodeputado belga Marc Botenga, após um momento inusitado e infeliz, ocorrido no parlamento europeu enquanto se discutia o massacre em Gaza, relembrou os governantes europeus que a população lhes exige muito mais do que simples retórica.

Não basta discursar no conforto do parlamento, e de seguida esquecer os homens, mulheres e crianças que habitam o inferno de Gaza, sendo nosso dever agir para evitar mais um acontecimento abominável. Porque de todos os frames do filme realizado por Fuller, e apesar da “visão do impossível” que eles representam, o mais relevante mostra o campo de concentração com a aldeia alemã em plano de fundo. No presente, a pergunta que se coloca é a seguinte: se Gaza é Falkenau, quem representa a Europa neste filme de terror?

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