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Biblioteca Municipal Florbela Espanca: degraus de cultura e integração

Biblioteca Municipal Florbela Espanca: degraus de cultura e integração

Comunidades estrangeiras de todo o mundo procuram amiúde a Biblioteca Municipal Florbela Espanca. “Talvez porque as bibliotecas são o primeiro acesso democrático ao sistema de cada lugar.”

“Este é nosso espaço mais importante”, explica António Lage, técnico superior na Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos, apontando para o balcão de atendimento. “Se isto não funciona, ficamos em maus lençóis. É o reflexo do nosso trabalho”, prossegue.

Na escadaria que conduz ao piso superior, o primeiro momento de leitura. Imortalizados nos degraus estão poemas de Florbela Espanca:

O mais conhecido de todos, Ser Poeta, é o primeiro que encontra quem sobe:

Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

Depois, Vozes do Mar:

Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d’oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...

E ainda Desejos Vãos:

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Foto Biblioteca Municipal Florbela Espanca DR

António fala-me de Florbela, mas também de Camilo Castelo Branco, realçando a presença do escritor em Matosinhos e a obra Duas Horas de Leitura, da qual sugere um excerto:

A duzentos passos da igreja paroquial de Leça da Palmeira, está, no alto de uma colina, uma capelinha de invocação de Santa Ana. É uma ermida tosca, erguida ali por devoção de não sabemos quem, desamparada depois às injúrias do tempo. Interiormente não sabemos o que é, nem o que foi. De fora tem a poesia, que pode dar-lhe a imaginação dos entes imaginativos, vulgarmente poetas, que são dessa moeda os mais liberais dissipadores.

Aquilo podia ser belo! Se lhe plantassem duas alas de acácias ao longo dos trinta degraus, que facilitam o acesso à ermida, e a assombrassem em redor de álamos e amoreiras, a capelinha de Santa Ana, só em si, valeria Sintra, com todos os seus enfeites de arte, que lhe dão a cor falsa duma natureza pintada.

Tem a ermida, encostado à parede, que olha para o nascente, um banco de pedra, seu ornamento único. É, sentado neste banco de pedra, que o leitor deve ler estes capítulos.

Nuno Cabo, chefe de divisão de Bibliotecas e Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos, junta-se à conversa.

“Há três bibliotecas municipais no concelho, Florbela Espanca, São Mamede de Infesta e Biblioteca Itinerante de Matosinhos. Em resumo, além do atendimento presencial e digital, oferecem uma ampla gama de serviços, como preservação da documentação, empréstimo de documentos, consulta de periódicos, materiais audiovisuais e exemplares em suportes especiais, acesso gratuito à internet e promoção de atividades de incentivo à leitura e de desenvolvimento das competências de literacia para adultos e crianças. Contamos ainda com 43 Bibliotecas Escolares”, desenvolve.

A Biblioteca Municipal Florbela Espanca é procurada pelo público em geral, mas também por investigadores que estudam as coleções referentes à história local e aos autores locais. “Não falamos só de autores de livros, mas também autores de música, por exemplo, sendo que uma das mais procuradas é a de Armando Leça. Mas temos também o espólio de Florbela Espanca e de António Nobre, que são periodicamente consultados”, acrescenta Nuno Cabo.

Foto Biblioteca Municipal Florbela Espanca DR “Temos de ser atrativos”

Grande parte do sucesso de uma biblioteca passa pela renovação da coleção. E Matosinhos, ao contrário de muitas outras bibliotecas que já visitei no contexto da Road Trip Literária, isso não é um problema. “A cultura é sempre o último para onde se dá dinheiro para investir. Nós temos um orçamento próprio, somos das poucas bibliotecas com orçamento próprio. Todos os anos, compramos cerca de três ou quatro mil livros”, expõe o chefe de divisão.

Mas a compra não é aleatória, resulta da interação com o público. “Não vamos comprar uma coisa só porque achamos que é muito erudita e que depois não serve para nada. E além dos livros, temos de ser atrativos no tipo de atividades que propomos”, afirma Nuno Cabo.

Além das diversas atividades para crianças, como a Hora do Conto, Pequenos Cidadãos, Grandes Ideias e Crianças Iguais, Histórias Diferentes, e para os adultos, o LeV (encontro internacional Literatura em Viagem, que já vai na 19.ª edição), a Feira do Livro e a Festa da Poesia (20.ª edição), o responsável destaca a biblioteca itinerante.

“Visitamos inúmeras instituições do concelho e percorremos as dez freguesias, parando em espaços públicos ou praças para cumprir um papel de proximidade. Vamos também ao Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo Masculino. O estabelecimento prisional feminino já tem uma biblioteca mais ou menos organizada, mas o masculino ainda não. Então, uma vez por mês, levamos um conjunto de livros. A viatura entra no estabelecimento e os reclusos utilizam a biblioteca como se estivessem numa biblioteca normal, em qualquer outro lugar”, detalha Nuno Cabo.

“É uma forma também de haver algum contacto com o exterior, com pessoas novas e com uma certa visão de liberdade que os próprios livros e os autores podem proporcionar, de forma imaginária. É uma forma de evasão. É um momento que estão ali completamente fora de contextos que alguns são muito complicados”, opina António Lage.

E a propósito, António Lage sugere um poema. Charneca em Flor, de Florbela Espanca:

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Comunidades estrangeiras de todo o mundo procuram amiúde a Biblioteca Municipal Florbela Espanca. “Talvez porque as bibliotecas são o primeiro acesso democrático ao sistema de cada lugar”, adianta Nuno Cabo.

Foto Biblioteca Municipal Florbela Espanca DR

“Aqui ninguém pergunta se a pessoa está legalizada ou não, se tem dinheiro ou não. A pessoa entra aqui e pode desde logo usufruir dos serviços da biblioteca, ler um livro ou um jornal, ir ao computador, aceder à internet. Acho que é por causa disso também que as comunidades estrangeiras nos procuram. Sentem que têm de provar que estão cá de boa-fé. Portanto, as bibliotecas são também uma forma de integração”, acrescenta.

Exemplo perfeito de integração é a história de Fernando Manuel Carlos Oliveira, de 75 anos, voluntário na biblioteca.

— O que fazia profissionalmente, senhor Fernando?

— Era bancário.

— E o que faz aqui na biblioteca?

— Venho duas vezes por semana, por algumas horitas, fazer um trabalho de recuperação de documentos antigos, digitalizar.

— E veio porquê?

— Eu tinha uma vida um bocado movimentada como bancário. Depois, vim para a reforma e, a conselho médico, ou seja, ligaram diretamente para o voluntariado para me inscreverem, passei a fazer voluntariado no banco de livros escolares. Mas, com a pandemia, acabou e passei para a vacinação, onde estive um ano. Agora estou aqui.

Foto Escadaria da Biblioteca Municipal Florbela Espanca DR

— Então foi um voluntário à força? — brinco.

— Não, não! O médico aconselhou-me, percebe? Eu tinha uma condição… estava estressado... Portanto, comecei a perder a chave de casa ou estacionava o carro e perdia a noção do local onde estava… A reforma foi uma descompressão e relaxei… e o médico aconselhou-me...

— É uma lição importante — digo.

— É mesmo. Eu aconselho toda a gente a fazer, para não chegarem ao ponto a que eu cheguei — conclui.

— Obrigado, Fernando.

Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!
”, diz-nos Florbela em Não Ser.

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Foto

A Road Trip Literária - Ler é o Melhor Caminho sucede à Road Trip Literária - 18 Distritos, 18 Bibliotecas, 18 livros, para voltar a dar palco às bibliotecas e voz a quem nelas trabalha, promovendo a leitura, a cultura e o conhecimento. Esta iniciativa sublinha que as bibliotecas são espaços públicos e gratuitos, onde todos, do primeiro ao último dia de vida, têm acesso ao conhecimento. Foi pedido aos responsáveis de cada biblioteca que escolhessem um livro de um autor local, com o objetivo de promover a identidade das regiões.

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