sol.sapo.ptJoana Andrade - 8 jul. 16:16

A Direita dividida e a nova batalha pelo bem comum

A Direita dividida e a nova batalha pelo bem comum

Em síntese, a visão de direita parte da realidade concreta do ser humano, não de abstrações utópicas. Valoriza instituições sólidas, a liberdade com responsabilidade, a moral como base da vida comum, e afirma a identidade e a soberania dos povos como pilares da civilização.

Ser de direita é assumir uma visão realista da natureza humana: o ser humano é, por natureza, imperfeito, limitado e desigual. Rejeitam-se, por isso, visões utópicas e projetos de transformação negadores da natureza humana, valorizando-se tudo o que enraíza, vincula e transmite pertença, seja na história, na cultura ou nas tradições.

Valoriza-se a ordem, a autoridade legítima e a continuidade institucional. Defendem-se as instituições tradicionais e tudo aquilo que demonstrou ser bom ao longo do tempo. Encara-se com ceticismo qualquer mudança abrupta ou experiência social radical. Prefere-se a evolução gradual às revoluções. O progresso não é uma linha ascensional irreversível: avançamos, mas também podemos regredir. Aquilo que de melhor descobrimos foi conquistado e merece ser preservado, pois é decisivo na história da civilização.

No domínio económico, o livre mercado, a propriedade privada e a livre iniciativa são essenciais, rejeitando-se o estatismo e qualquer forma de controlo centralizado. Ainda assim, reconhece-se que a economia deve estar subordinada à política, e que a ordem internacional deve respeitar a soberania das nações. As pessoas são mais importantes do que os acionistas nas políticas nacionais. Os mercados são instrumentos ao serviço das comunidades, não fins em si mesmos. Valoriza-se o mérito, o esforço individual e o espírito empreendedor, recusando-se o igualitarismo imposto e a maximização do egoísmo.

No plano moral e cultural, privilegia-se o que demonstrou funcionar melhor para a pessoa e para a comunidade ao longo do tempo, bem como o património cultural e axiológico e os seus valores objetivos. Critica-se o relativismo, o niilismo e as ideologias identitárias contemporâneas. Acredita-se na existência de princípios morais universais e perenes, e valoriza-se o legado religioso e civilizacional do Ocidente.

Defende-se a soberania nacional, a identidade cultural e o patriotismo como expressões de pertença e continuidade histórica. Rejeita-se a globalização desregulada e o globalismo tecnocrático, reafirmando-se a defesa da civilização ocidental e dos seus valores fundadores.

Nas últimas décadas, emergiram novas direitas com características distintas. Podemos falar de uma fragmentação interna e, ao mesmo tempo, de uma clarificação entre uma direita moldada pelo consenso liberal e outra, genuína, conservadora, democrática e no presente anti-sistema, que é frequentemente associada ao extremismo como forma de a deslegitimar.

Por um lado, consolidou-se uma direita hiperliberal, marcada pela defesa do mercado livre, pela desregulação económica, pelo cosmopolitismo financeiro e pelo individualismo competitivo. Por outro, sobretudo no século XXI, surgiu uma nova direita de feição anti-sistémica, nacionalista e crítica do liberalismo global. Esta desafia as elites, apela à soberania popular e adota um discurso socialmente protetor, próximo de sensibilidades tradicionalmente associadas à esquerda. Há também formulações extremistas e radicais de direita, mas essas são expressões residuais.

Este realinhamento político tornou visível um paradoxo: hoje, há mais afinidades entre uma nova direita soberanista e sectores da velha esquerda trabalhista do que entre qualquer uma dessas correntes e o progressismo hiperliberal dominante. A retórica da globalização, da diversidade abstrata e da financeirização, promovida por elites tecnocráticas sob a bandeira do progresso, alienou amplos sectores populares que, outrora fiéis à esquerda, reconhecem agora na nova direita a defesa dos seus valores identitários, das suas condições materiais e do seu enraizamento cultural.

Este cruzamento inesperado de discursos evidencia a falência das clivagens ideológicas tradicionais e exige uma nova cartografia do conflito político contemporâneo.

Interessa-nos, enquanto conceito fundamental, a direita considerada tradicional e conservadora, de matriz democrática. Esta partilha, ainda assim, com a direita hiperliberal certos princípios de base, como a defesa do mercado e da liberdade individual, mas assenta em fundamentos filosóficos, éticos e políticos profundamente distintos. É mesmo adversária do hiperliberalismo enquanto ideologia globalista e promotora da mercantilização da vida humana.

A conceção de homem e de sociedade é substancialmente diferente nas três direitas, conservadora, hiperliberal e extremista. Há uma outra direita aparente, a que a esquerda permite, mas essa não é uma direita verdadeira.

Para a direita conservadora, o ser humano é falível e só se compreende enraizado numa história, numa cultura e numa comunidade. É a experiência acumulada que transmite os valores que orientam a existência. A pessoa realiza-se não apenas através da liberdade pessoal e da sua singularidade, mas também integrando uma ordem moral e comunitária, orientada para o bem comum e guiada pela responsabilidade e pela tradição. Para o hiperliberalismo, o homem é essencialmente um indivíduo maximizador dos seus interesses próprios, e é desse processo que o outro beneficia. Não existe sociedade, mas apenas indivíduos. A liberdade é irrestrita, desde que não cause dano direto a outrem. Trata-se de uma antropologia do sujeito atomizado: não há comunidade, apenas indivíduos soberanos, autodeterminados e autossuficientes. O bem comum, a tradição ou a comunidade são frequentemente vistos como obstáculos ao progresso individual.

Vejamos algumas questões sobre o Estado, a soberania e a ordem económica. Na perspetiva conservadora, o Estado deve tutelar a ordem, a soberania e a moral pública. Não deve ser intervencionista na economia, mas tem o dever de proteger a identidade nacional, as tradições e os valores fundadores da civilização. O Estado não é axiologicamente neutro: a ética não se confina à esfera privada e existe uma conceção partilhada do bem político e moral. Mas importa clarificar: não se trata de impor uma “moral estatal”, mas sim de preservar um património moral que resulta da vida social e cultural das comunidades.

Já o hiperliberalismo defende um Estado com intervenção mínima em todas as áreas, inclusive nas culturais e morais. A soberania nacional é frequentemente relativizada em nome do livre comércio, dos tratados internacionais e da eficiência económica. O mercado livre é visto como o modelo ideal de ordem, devendo o seu princípio autorregulador aplicar-se a toda a sociedade.

A direita tradicional pode adotar posturas protecionistas, defendendo o comércio livre apenas na medida em que beneficie primeiro a nação em detrimentos de oligarquias globalistas. Sustenta a propriedade privada, mas subordina a economia à política e ao bem comum. Valoriza a produção enraizada, o trabalho e a economia nacional, protegendo-os do poder das corporações transnacionais.

Para o hiperliberalismo, o mercado é soberano. A lógica liberal-libertária e o poder das oligarquias globalistas e culturais formam o vértice da ordem económica. A economia deve reger a política e não o contrário. Tudo se torna mercantilizável: saúde, educação, cultura, identidade. A globalização é vista como inevitável e benéfica.

No plano moral, a direita tradicional valoriza princípios objetivos, a herança religiosa, a família e a continuidade civilizacional. Critica o relativismo, o hedonismo e a dissolução dos vínculos sociais, bem como a ideia de que a verdade, a realidade ou a identidade dependem exclusivamente da subjetividade individual.

O hiperliberalismo, por seu lado, tolera e ou promove o relativismo moral, desde que não interfira com a liberdade de escolha. A tradição é considerada opcional ou retrógrada, e a cultura é reduzida principalmente a produto de consumo.

A direita tradicional defende a soberania nacional, as fronteiras e o primado da política local sobre normas globais. Critica o globalismo tecnocrático. Já o hiperliberalismo identifica-se com o globalismo como ideologia. A globalização é concebida como um destino político e económico inevitável. Defende-se a erosão das fronteiras em nome da mobilidade de capitais, bens e pessoas, promovendo-se a autoridade de instituições supranacionais sobre as soberanias nacionais.

Atualmente, em aspetos fundamentais, há mais em comum entre a direita tradicional e a esquerda tradicional (ou trabalhista) do que entre qualquer uma delas e o hiperliberalismo progressista, seja na sua vertente económica (neoliberalismo globalista) ou cultural (identitarismo pós-moderno). Verifica-se uma convergência visível entre essas tradições, precisamente aquelas que importa preservar e praticar. Essa convergência manifesta-se na crítica ao globalismo, na valorização do enraizamento cultural e comunitário, na defesa dos trabalhadores e do bem comum, e no ceticismo em relação ao progressismo enquanto dogma. Ambas rejeitam a subordinação da política aos mercados globais e defendem economias enraizadas e produtivas. Valorizam a soberania nacional, a regulação democrática da economia e o papel da cultura e das instituições locais. Rejeitam a atomização do indivíduo e o cosmopolitismo abstrato promovido por elites desligadas da realidade concreta. A comunidade, a solidariedade e os vínculos sociais são centrais para ambas. Reconhecem o valor do trabalho, da justiça social e da dignidade humana, criticando as desigualdades geradas pelo novo capitalismo. O bem comum deve prevalecer sobre o interesse individual isolado. Partilham ainda a consciência de que o progresso técnico ou económico não é sinónimo de progresso humano ou ético. Ambas valorizam o legado histórico e reconhecem os limites morais na ação política. São visões que procuram conciliar realismo com responsabilidade, tradição com justiça e liberdade com coesão social.

Tanto o progressismo tecnocrático como o neoliberalismo tendem a reduzir a política à mera gestão técnica ou à expansão de direitos abstratos. Em contraste, a direita e a esquerda tradicionais insistem na política como expressão da vontade comum e instrumento de justiça. Também na “velha” esquerda encontramos a rejeição do subjetivismo e do relativismo cultural e moral. A direita tradicional critica a cultura da desconstrução identitária e como a esquerda clássica reconhece valores como a dignidade do trabalho, a igualdade, a solidariedade e a verdade. Por fim, convergem ainda na denúncia da desvalorização da soberania popular. A nova ordem global hiperliberal tende a substituí-la por uma governação supranacional e tecnocrática. Direita soberanista e esquerda popular denunciam essa erosão da democracia real. O que hoje chamamos de “hiperliberalismo progressista”, a fusão entre o globalismo económico e o progressismo cultural identitário é, no essencial, incompatível com as tradições fundadoras da direita conservadora e da esquerda trabalhista. Ambas assentam em valores partilhados e numa ética pública que transcende o interesse privado, propondo uma sociedade justa, enraizada e orientada para o bem comum. São respostas distintas, mas convergentes, perante a desintegração das comunidades e a destruição dos laços sociais provocadas pelo capitalismo extremo e pelos radicalismos culturais.

Em suma, trata-se de uma convergência inesperada, mas não improvável. É o reencontro entre tradição e justiça social, responsabilidade e pertença, identidade e bem comum. Uma proposta que resgata o humano da lógica da fragmentação e o reconcilia com o enraizamento, a continuidade e a esperança num futuro vivido com sentido. Idealmente o melhor da direita e da esquerda convergiriam para substituir a degradação da ordem liberal e progressista que se tornou predominante num mundo que factualmente não é bom.

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