rr.pt - 8 jul. 22:18
Cenas de um julgamento. Juíza não admite que Sócrates sugira que tem "défice cognitivo"
Cenas de um julgamento. Juíza não admite que Sócrates sugira que tem "défice cognitivo"
No segundo dia do julgamento do processo Marquês, José Sócrates e a juíza Susana Seca voltaram a chocar, num dia que fica marcado por horas de depoimento do antigo chefe de Governo para desmontar "acusações falsas e delirantes".
De gravata vermelha, fato cinzento e voz forte, José Sócrates apresenta-se para a segunda sessão do julgamento do processo Marquês. A voz forte não é pormenor de somenos importância. José Sócrates vai finalmente falar perante o tribunal. Depois de mais de uma década, o antigo primeiro-ministro ouve a juíza Susana Seca explicar que ele pode prescindir de prestar declarações nesta fase do julgamento, sem ver a sua defesa prejudicada. Mas Sócrates não quer.
“Eu iriei abordar todas as questões da Operação Marquês”, assegurou perante o tribunal. E foi avisando que poderia estar horas, dias a fazê-lo.
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O processo é extenso, as acusações que lhe são dirigidas várias e José Sócrates sugere dividir a sua exposição por temas. Esta terça-feira, dedicou-se às questões relacionadas com a PT e a sua relação com Ricardo Salgado, antigo presidente do Banco Espírito Santo.
As ideias estão organizadas na cabeça de Sócrates, mas o arguido choca inúmeras vezes com a juíza Susana Seca, presidente do coletivo de juízes.
José Sócrates queixa-se que é interrompido e ouve repreensões da magistrada. “Não vamos entrar em diálogo”, assegura a juíza ao antigo chefe de Governo.
Sócrates quer passar em revista testemunhos feitos durante a fase de instrução, cita documentos e vai desfiando argumentos para contestar as acusações que lhe são feitas. A juíza tenta que atalhe caminho.
“A prova produz-se em audiência e somos nós que avaliamos”, diz a juíza, acrescentando que os “testemunhos na instrução não valem nada” e que se José Sócrates for ler os depoimentos “não saímos daqui”.
Sócrates teima. “Não vou seguir essa orientação” e ouve nova advertência: “as declarações são livres, mas têm regras”.
Com o andamento do dia, as questões mais processuais acalmam, mas o choque entre juíza e José Sócrates nem por isso.
O antigo primeiro-ministro por várias vezes adjetiva as acusações de que é alvo como sendo “falsa”, delirante”, “amalucada”, “estapafúrdia” ou “fantasiosa”. Há também alturas em que se irrita com o procurador do Ministério Público, indicando que ele, o procurador, só pode falar se a juíza der a palavra. E outras alturas em que, com alguma ironia, mostra-se surpreendido com perguntas da juíza.
"Não vai continuar nesse tom"A meio da tarde, a juíza Susana Seca parece ter atingido o seu limite, notando a Sócrates que os presentes na sala têm “todos o mesmo nível de inteligência”.
“Não tem de fazer escárnio e fazer crer que eu tenho défice cognitivo ou dar a entender que o tribunal não tem conhecimento. Não vai continuar nesse tom, não vai usar expressões irónicas dirigidas a mim, nem ao Ministério Público”, continua a juíza.
Entre esta tensão com a juíza, José Sócrates, socorrendo-se de notas e alguns documentos, vai apresentando a sua argumentação.
Por exemplo, nega que alguma vez tenha sido amigo de Ricardo Salgado. “Não tinha o telefone dele, não sabia onde morava”, garante. Diz que só esteve com o banqueiro algumas vezes e depois de ter saído do Governo “nem sequer lhe ligava no Natal”.
Nesta altura, a juíza interrompe Sócrates e ouvem-se registos de conversas telefónicas, realizadas entre 2013 e 2014, entre José Sócrates e Ricardo Salgado.
Nas cinco escutas ouvem-se combinações para almoços e jantares, manifestações de apreço profissional e cumprimentos para a esposa de Salgado. Sócrates e Salgado tratam-se por amigo e referem-se a conhecidos em comum. No fim de reproduzidas as escutas, a juíza pergunta a Sócrates se não há familiaridade. Sócrates nega.
Assim como nega que tenha instruído a administração da Caixa Geral de Depósitos para impedir determinados negócios, nega que tenha sido influenciado por Ricardo Salgado para designar Manuel Pinho como ministro da Economia ou nega que tenha favorecido a PT.
Sócrates falou e ao fim do dia esperava ser questionado. No total, entre intervenções de manhã e de tarde o antigo primeiro-ministro terá estado a falar durante cerca de cinco horas, mais as três vezes que prestou declarações aos jornalistas, quase sempre em tom irritado, à porta do edifício no Campus da Justiça, onde decorre o julgamento.
Mas Sócrates não falou sobre tudo o que queria falar, longe disso. A Operação Marquês continua esta quarta-feira e José Sócrates continuará a fazer uso da palavra, agora, para responder ao que lhe for perguntado apenas sobre a matéria que esteve esta terça-feira em destaque: as ligações à PT e a Ricardo Salgado.