sol.sapo.ptsol.sapo.pt - 8 jul. 14:03

Funcionário do MNE autorizou indevidamente 619 vistos de Bissau em 17 dias

Funcionário do MNE autorizou indevidamente 619 vistos de Bissau em 17 dias

Um técnico do MNE autorizou 619 vistos, sem controlo de segurança. Caso, que está a ser investigado pelo Ministério Público, expõe falhas num sistema cuja fragilidade também vai a reboque do debate na AR sobre as propostas para regular a imigração

Em pouco mais duas semanas de dezembro de 2022, Hélder L., técnico superior do Ministério dos Negócios Estrangeiros, autorizou 619 vistos com a prerrogativa excecional de “parecer das autoridades” – abrindo a porta à entrada de centenas de pessoas em Portugal sem qualquer verificação de segurança. O relatório do processo disciplinar da Inspeção-Geral Diplomática e Consular, a que o Nascer do SOL teve acesso, revela um erro grave do funcionário, mas as testemunhas, colegas do trabalhador, destacam também a angústia e a confusão emocional do ‘arguido’, quando confrontado com a violação dos seus deveres.

Era dezembro, um mês de maiores deslocações entre países, e, talvez por isso, os processos de vistos entravam e saíam num fluxo agitado e contínuo. Alguns pedidos vinham de postos consulares que exigiam uma atenção redobrada, especialmente em tempos de aumento de migrações e de maior pressão sobre um controlo fronteiriço. Bissau, segundo testemunhas do processo já citado, era um deles.

Foi nesse ambiente agitado, que Hélder L., recentemente integrado no Ministério dos Negócios Estrangeiros, tomou decisões que mudariam o seu percurso profissional. Entre 5 e 22 de dezembro de 2022, o técnico superior a quem tinha sido atribuído o posto consular de Bissau carregou por 620 vezes numa funcionalidade digital da Rede de Pedido de Vistos (RPV), destinada apenas a situações excecionais: o ‘parecer das autoridades’.

A excecionalidade da opção devia-se ao facto de esta dispensar o controlo de segurança efetuado pelo extinto SEF, normalmente obrigatório. O visto era concedido sem passar por qualquer crivo e avaliação de risco migratório. Um ‘atalho’ institucional reservado a casos extremos, mas que Hélder utilizou para processar pedidos para emissão de vistos de estudo, de trabalho e de reagrupamento familiar. Apenas um dos casos reunia os critérios legais. Os restantes 619 não reuniam os requisitos legais para o ‘parecer das autoridades’ e nunca deviam ter seguido esse caminho.

Nesse botão ‘não se toca’. A ideia era repetida pelos profissionais com mais anos de casa. O ‘parecer das autoridades’ era, segundo todos os depoimentos recolhidos pela Inspeção-Geral Diplomática e Consular (IGDC), uma funcionalidade com regras apertadas: urgências médicas com junta médica marcada, situações humanitárias raras e previamente assinaladas pelos próprios postos consulares.

Uma colega de Hélder, ouvida no âmbito do processo disciplinar, foi taxativa no seu testemunho: «O que me disseram logo foi que o botão dos pareceres das autoridades não é para mexer. Só em casos excecionais». O artigo 53.º da chamada Lei dos Estrangeiros prevê, numa das suas alíneas, que apenas «em casos urgentes e devidamente justificados, pode ser dispensada a consulta prévia».

O ‘botão’ a carregar seria o do ‘parecer dos serviços’, um processo mais moroso, mas adequado à esmagadora maioria dos pedidos. Hélder, segundo os relatos de testemunhas do processo, saberia distinguir ambos. O próprio reconheceu-o, ainda que mais tarde tenha alterado parcialmente as declarações.

Um padrão quase invisível

O caso só foi detetado quando uma analista, ao preparar uma ida à Embaixada de Portugal em Bissau, por não estar ‘por dentro’ daquele posto consular, ter decidido verificar os processos dos pedidos mais recentes. Notou logo algo estranho. Em pedidos de vistos de estudo, de trabalho e até de turismo podia ler-se «não se vê inconveniente» quando devia ter a indicação de AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) ou «divisão de vistos», diz a analista, ouvida no processo. «Vi cerca de 20 ‘pareceres das autoridades’ (…) e concluí que ele [Hélder] se tinha enganado». Continuou a mergulhar nos registos da RPV e o padrão revelou-se em toda a sua extensão. O ‘botão’ no qual não se devia tocar tinha sido ativado 620 vezes. Em apenas 17 dias.

Nas palavras do instrutor do processo disciplinar que assina o relatório: «Concedeu num curt��ssimo espaço de tempo centenas de ‘pareceres das autoridades’ a pedidos de vistos não elegíveis como se não houvesse amanhã».

O alerta seguiu de imediato para o superior hierárquico de Hélder, que confrontado com o erro teve um momento de colapso. Foi chamado, não queria acreditar no que se tinha passado, negou dolo e tentou justificar dizendo que achava que era assim que se fazia. Depois desabou. «Chorou copiosamente, pôs as mãos à cabeça e saiu da sala em lágrimas», segundo testemunhas. Estava «transtornado», «abatido» e «confuso». 

Os colegas sublinharam que nunca o tinham visto assim. «Era um tipo muito seguro». Houve quem dissesse que até era em demasia. 

«Ofereci-me para o ajudar, disse que não era preciso porque já sabia. Fiquei com a impressão de que queria fazer tudo sozinho», afirmou uma testemunha.

Essa autoconfiança excessiva talvez se tenha transformado em isolamento. Hélder não pediu ajuda. Não consultou colegas. Mesmo sendo novo na função e tendo-lhe sido atribuído um posto difícil, evitou perguntas. Preferiu avançar, talvez, por razões que nem ele saiba explicar.

Confusão, facilitismo ou algo mais?

Nas suas declarações, Hélder tentou justificar-se com a alegada ausência de orientações escritas. Sugeriu que o sistema era confuso. Que a interface digital induzia em erro. Numa versão posterior, tentou implicar um superior, alegando que este lhe teria dado instruções informais para o uso da prerrogativa. Mas nenhuma testemunha corroborou essa versão. «Todos sabíamos que aquele botão era só para casos especiais», e Hélder também, tinha feito formação específica.

O caso foi encaminhado ao Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa e o técnico chegou a ser ouvido pela Polícia Judiciária. 

A defesa de Hélder ainda tentou que fosse aplicada ao seu caso a Lei da Amnistia, aprovada por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, com o argumento de que os atos ocorreram em dezembro de 2022. Mas os atos de que Hélder era acusado podiam configurar crimes como corrupção passiva e auxílio à imigração ilegal — delitos expressamente excluídos do âmbito da amnistia.

O caso encontra-se ainda em investigação, «sujeito a segredo de justiça externo»,  apurou o Nascer do SOL junto da PGR. 

Por outro lado, no processo da IGDC é afastada a ideia de dolo direto ou de corrupção. Não há prova de ganho económico ou registo de conluio externo. O que se conclui é houve um desrespeito grosseiro e, no mínimo negligente, pelas regras e uma falha de julgamento.

Atenuantes e o lado humano

Embora, não se escamoteie a gravidade do erro de Hélder, no relatório constam vários elementos mitigadores que foram tidos em conta para a ponderação da ‘pena’ do técnico. «O arguido teve sempre uma atuação exemplar, tendo até recebido uma menção honrosa», não houve prova de «vantagem pessoal», a confissão voluntária e um impacto emocional evidente, serviram de atenuante.

Assim como a situação familiar complicada. Hélder tem um filho menor com 60% de incapacidade.

A recomendação foi a de que se aplicasse a sanção de multa, correspondente a 10 dias de remuneração base, justificando-se a pena com as «especificidades do posto consular que lhe foi atribuído e não se ter logrado provar a obtenção de vantagens ilícitas, sem se perder de vista que o Trabalhador Arguido era licenciado em direito, que acarreta redobrada atenção e ponderação na sua atuação».

O relatório é assinado pelo instrutor do processo Paulo Tavares Pereira a 22 de julho de 2024, depois verificado pela inspetora-geral diplomática e consular Maria José Pires no mesmo dia e, então, remetido à atenção do ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel,  que confirmou, a 26 de julho de 2024, a aplicação de uma sanção disciplinar, mas reduz a multa para seis dias de remuneração base, em vez dos dez recomendados no relatório. 

O eco de um erro

O episódio tem contornos quase caricatos, mas acaba por expor fragilidades estruturais. Um único técnico carregou centenas de vezes num ‘botão’ que quase ninguém ousava tocar. O inquérito disciplinar conclui que se tratou de um erro, mas esse erro, foi cometido através de um gesto automático que tem o poder de contornar os obstáculos de um sistema pensado para proteger as fronteiras de um país. 

O Nascer do SOL tentou saber junto do MNE se o funcionário ainda fazia parte do mapa de pessoal e se, depois de detetado o erro, tinha havido controlo posterior dos 619 casos, mas não obteve resposta.

O absurdo do caso destapa as fissuras de um modelo aparentemente assente na confiança cega e num controlo extemporâneo. Quando basta um clique para abrir as portas de um país, o erro pode não estar só no dedo que carrega num botão, mas também no sistema que o permite. Este caso ganha maior relevo num momento em que a Assembleia da República se prepara para votar as alterações à Lei da Nacionalidade propostas pelo Governo, para endurecer as regras e pôr um travão à imigração desregulada.

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