eco.sapo.pt - 8 jul. 18:06
Contratos da Glintt com AMA disparam com gestora da agência
Contratos da Glintt com AMA disparam com gestora da agência
Desde que Sofia Mota é quadro da AMA, primeiro como diretora, depois como presidente, a Glintt ganhou cerca de 18 milhões de euros de concursos.
Quando a ministra Margarida Balseiro Lopes decidiu exonerar João Dias como presidente da Agência para a Modernização Administrativa (AMA), a principal explicação foi a reduzida execução do PRR e, por isso, ninguém esperaria que a sucessora fosse Sofia Mota, que liderava o departamento da agência pública que tinha mais fundos europeus do Plano de Recuperação e Resiliência. Mas foi isso que sucedeu: A gestora era diretora do TicAPP — Centro de Competências Digitais da Administração Pública, uma unidade orgânica da AMA desde 2018. E desde que está na agência, ressalta um facto, medido pela consulta do portal do governo. A Glintt passou a ganhar uma sucessão de contratos que, nestes anos, atingiu cerca de 18 milhões de euros, a maior parte deles com concursos abaixo dos 750 mil euros, evitando assim o visto prévio do Tribunal de Contas.
Como o ECO revelou aqui, a Agência para a Modernização Administrativa (AMA) transformou-se numa espécie de ‘agência pública de emprego’ e negócios da Glintt Global, empresa de serviços tecnológicos com a qual assinou dezenas de contratos nos últimos oito anos, uma relação crescente que causa desconforto interno e terá já motivado denúncias judiciais. Os contratos entre a AMA e a Glintt acumulam-se, e ganharam relevância desde a entrada de Sofia Mota na agência, primeiro no TicAPP e depois como presidente do conselho diretivo. Só para consultoria em interoperabilidade foram entregues à Glintt, entre agosto e fevereiro, cinco concursos, sendo que em dezembro foram adjudicados dois com sete dias de diferença entre si (um de 375.044,80 euros e outro de 710.707,20 euros). Seguiu-se depois outro de 1,2 milhões de euros a 13 de fevereiro.
O mais recente, um que está mesmo no limite dos 750 mil euros, foi adjudicado em maio deste ano, no valor de 739.200 euros, para serviços de gestão, arquitetura de sistemas de informação, testes, suporte e operação para a operacionalização de identidade digital (autenticação dos cidadãos em portais ou aplicações do Estado). Com este contrato, contabilizam-se cinco em sete meses com um valor acumulado de 4,1 milhões de euros.
Fonte oficial da Glintt diz ao ECO que a AMA é uma das entidades com as quais colabora “há muitos anos” por via de contratações com “rigorosos procedimentos”, que são “altamente escrutinados”. Mas na verdade, um dos contratos mais relevantes dos últimos anos e que foi sujeito a visto do Tribunal de Contas foi mesmo chumbado. O anterior presidente recusou a estratégia de divisão do contrato e remeteu para o tribunal um de valor superior a dois milhões de euros, mas os juízes das contas públicas chumbaram-no, como avançou o Correio da Manhã. Para o TdC, a existência do critério mínimo, exposto no caderno de encargos do concurso público internacional, de que o gestor de projeto tinha de ter trabalhado, pelo menos, dois anos em gabinetes do Governo tinha impacto na concorrência. “O leque de potenciais concorrentes, já de si estreito, restringe-se muitíssimo”, advertiu o TdC. Nesse contrato em questão, ligado à identidade digital, concorreu apenas a Glintt e a Quantico Solutions, sendo que o nome do gestor escolhido surge rasurado por proteção de dados. Ainda assim, garante fonte oficial da Glintt, o volume de projetos ganhos é “fruto da capacidade técnica demonstrada e da qualidade das soluções e equipas”.
Quem é afinal a presidente da AMA, Ana Sofia Rodrigues dos Reis Mota? E qual é o seu universo de relações? Licenciada em Informática e Gestão de Empresas pelo ISCTE, com conclusão no ano 2000, saltou por três empresas tecnológicas, a última das quais a Pararede, depois transformada em Glintt, onde esteve mais de dez anos, primeiro como ‘manager’ e depois como ‘senior manager’.
Chegou aos serviços públicos graças a Maria Manuel Leitão Marques, à data ministra, que criou uma estrutura de projeto através de uma resolução de conselho de ministros que designou de TicAPP — Centro de Competências Digitais da Administração Pública, a funcionar no quadro da agência. Curiosamente, apesar de ser uma estrutura com um prazo predefinido de três anos (36 meses), Sofia Mota terá entrado desde logo com um contrato sem termo. E diretamente para diretora, o que surpreendeu quem trabalhava, à data, na AMA. Mas nenhum dos contactados conseguiu identificar o ponto de ligação de Sofia Mota a Maria Manuel Leitão Marques.
O TicAPP funcionou, desde o primeiro momento, como uma agência autónoma dentro da AMA. “A Sofia Mota geriu o centro como um feudo“, confidencia ao ECO um quadro superior da agência que conviveu diretamente com a gestora. “Controladora, centralizadora e muito trabalhadora“, diz outra fonte da agência. Sem particulares competências de gestão e liderança, reconhecem a Sofia Mota a capacidade de entregar projetos. “Como gestora de projetos, o ‘delivery’ é o seu forte”, admite. Falta-lhe visão estratégica. A mesma fonte aponta, por exemplo, para a inexistência de uma estratégia pós-agosto de 2026, quando terminar o prazo de execução do PRR. “Só agora se começou a falar do tema, a pouco mais de um ano do fim do prazo. Não há visão nem estratégia para o dia seguinte“. É por isso que há, dentro da AMA, expectativas elevadas em relação à nova equipa governativa, e a Bernardo Correia, o secretário de Estado que veio da Google. No encontro da APDC, anunciou a criação de uma Agência para o Digital (nome provisório), que resultará da fusão de organismos públicos. E presume-se que a AMA é uma delas.
Uma terceira fonte da agência recorda, aliás, que as razões oficiais que levaram à exoneração de João Dias, em funções de setembro de 2022 a maio de 2024 foram a execução do PRR. A AMA tinha uma dotação de cerca de 200 milhões de euros de fundos deste plano. Como se lia no despacho de exoneração, no rol dos argumentos para o despedimento constava “a premente necessidade de acelerar o cumprimento atempado dos compromissos assumidos no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) em matérias de modernização, simplificação administrativa e transição digital”. E num primeiro momento, a ministra Balseiro Lopes fez saber o “incumprimento de 70% de metas do PRR” e até “gestão danosa”, coisa que omitiu no despacho oficial, para justificar a decisão. Mas a principal unidade da AMA na gestão dos fundos, e que estava em funções já antes da entrada daquele presidente, é precisamente o TicAPP, liderado então por Sofia Mota. “O que serviu para demitir um gestor, afinal, não foi tido em conta na promoção de outra gestora“, aponta, com ironia, um dos quadros ouvidos pelo ECO. Aliás, a AMA tem uma gestora do PRR, Ana Churro, que estava em funções e assim continua.
Ao contrário de João Dias, que passou pela Cresap, Sofia Mota contornou esta obrigação legal com um mecanismo expedito que é cada vez mais usado. O Conselho Diretivo da AMA entrou em funções em maio com o recurso ao chamado ‘regime de substituição’. Não só Sofia Mota, como Mónica Letra e João Roque Fernandes. Foram escolhas da nova presidente, e Roque Fernandes também foi senior manager da área de Administração Pública Central não Saúde na Glintt, entre 2013 e 2017.
Ao contrário de João Dias, que passou pela Cresap, Sofia Mota contornou esta obrigação legal com um mecanismo expedito que é cada vez mais usado. O Conselho Diretivo da AMA entrou em funções em maio de 2024 com o recurso ao chamado ‘regime de substituição‘. Não só Sofia Mota, como Mónica Letra e João Roque Fernandes, os outros dois membros do conselho diretivo. Foram escolhas da nova presidente, e Roque Fernandes também foi ‘senior manager’ da área de Administração Pública Central não Saúde na Glintt, entre 2013 e 2017.
Dentro da AMA, há a perceção de que existe um grupo que domina a agência, e que terá sido, aliás, o responsável pelo afastamento de João Dias. Além dos nomes citados, surgem também, nas conversas de corredor, sempre sob anonimato, o novo diretor do TicAPP, Luís Miguel Correia, que antes de entrar na AMA esteve durante 14 anos na Glintt, tendo as suas últimas funções na empresa (2022) sido na Nexllence powered by Glintt, a anterior marca dedicada à consultoria tecnológica. Como Sofia Mota, é diretor do centro de Centro de Competências Digitais da Administração Pública, o referido TicAPP, convivendo com a intervenção operacional e de definição de concursos do professor do Técnico, André Vasconcelos.
Na verdade, uma das peças-chave neste grupo é o professor do Técnico, André Vasconcelos, que é um colaborador externo mas desempenha funções de liderança operacional informal na área da ‘identidade digital’, com concursos relevantes como o da Chave Móvel Digital, que está, aliás, em curso, como o ECO revelou. Vasconcelos, recorde-se, já tinha sido notícia no ECO por causa das dúvidas sobre a legalidade do contrato que mantinha com a AMA e, na sequência, o anterior presidente da entidade pública decidiu não renovar o contrato. No entanto, quando Sofia Mota sucedeu a João Dias, voltou a contratar André Vasconcelos para uma função de “Investigação de Desenvolvimento”, sob a forma de “protocolo”, e financiado pelo PRR.
Finalmente, há outro nome a constar deste grupo: Rita Rei, que, coincidência, era chefe de gabinete do secretário de Estado da Modernização e da Digitalização, Alberto Manuel Rodrigues da Silva, quando João Dias foi exonerado e foi, depois, contratada por Sofia Mota para diretora da AMA. E onde estava antes? De março de 2022 a abril de 2024, foi Técnica especialista do Gabinete do secretário de Estado da Justiça, Pedro Tavares, para a assessoria técnico-jurídica nas áreas da contratação pública e PRR. Era precisamente na área da justiça que estava o atual vogal da AMA, João Roque Fernandes, e para onde também foi colaborador André Vasconcelos quando o anterior presidente não lhe renovou o contrato de prestação de serviços. Mas já tinha sido quadro da AMA, entre agosto de 2011 e maio de 2022.