Observador - 7 ago. 00:10
Comentadores por conta e risco: quem analisa também devia ser analisado
Comentadores por conta e risco: quem analisa também devia ser analisado
Opinião travestida de análise é o novo entretenimento. Mas sem transparência, é apenas manipulação.
São muitos, repetem-se e raramente se contradizem. Aparecem de fato e gravata, sentam-se com ar grave, mas raramente são mais do que porta-vozes reciclados. Chamam-lhes comentadores, mas são opinadores com crachá escondido.
“Comentário político” é o novo desporto nacional dos domingosNa televisão portuguesa, existem hoje pelo menos 78 comentadores fixos. O retrato-tipo? Homem, acima dos 50, com um passado partidário e um presente ideológico muito presente. Segundo o MediaLab ISCTE, mais de metade têm ligação à política, como militantes ou ex-governantes. E muitos outros têm vínculos escondidos: advogados de dirigentes, assessores de bastidores, consultores com interesses.
É o caso de Carmo Afonso, apresentada como advogada e comentadora, mas que prestou serviços à atual líder do Bloco de Esquerda. Quando comenta políticas económicas ou critica adversários da sua cliente, o espetador devia saber. Não sabe. Pedro Duarte, ex-deputado do PSD, é outro exemplo. Aparece como comentador na CNN, sem memória do seu passado (e presente) social-democrata.
Uma opinião não é neutra só porque veste fatoQuando se omite a biografia política, o comentário é fingimento. É whisky servido em garrafa de sumo. Parece uma coisa, mas entorpece como outra. Os media tornam-se cúmplices dessa encenação: fingem imparcialidade, vendem narrativa.
Primeiro, há o problema nacional: falta de regulação e transparência. Em Portugal, não há qualquer obrigação de declarar conflitos de interesse nos comentários políticos. Não se exige pluralismo, nem se separa claramente opinião de informação. As televisões vivem da repetição: painéis com três opinadores que dizem mais ou menos o mesmo, com uma divergência encenada para parecer debate.
Depois, há o modelo económico: comentar é barato, informar é caro. Três comentadores em estúdio custam pouco e preenchem horário. Juntar isso à preguiça editorial e à cumplicidade ideológica, e o resultado é um ciclo vicioso de opinião sem responsabilidade.
Por fim, há o contraste europeu. A BBC, no Reino Unido, é obrigada a identificar a filiação partidária de quem comenta. Segundo a Ofcom, regulador britânico das comunicações, o comentário deve ser imparcial e transparente. Políticos no ativo não comentam. E os ex-políticos têm de ser identificados como tal. A imparcialidade não é um desejo; é um dever.
Na Alemanha, cada canal público tem um conselho plural que supervisiona comentadores e participa na escolha dos painéis. Na Suécia, existem ombudsmen dedicados à fiscalização do comentário. Na Holanda, constrói-se diversidade nos painéis: ideológica, geracional, de género.
Portugal é campeão europeu em opinião e lanterna vermelha em transparênciaE depois admiram-se da crise de confiança. Segundo o Trust Project, organização que certifica média credíveis, os leitores são hoje mais exigentes com a distinção entre opinião e jornalismo. A falta de transparência é um dos principais motivos apontados para a quebra de confiança nas notícias.
Nos EUA, é crescente o escrutínio sobre a ligação entre comentadores e interesses políticos ou económicos. As televisões mais influentes passaram a declarar, ainda que discretamente, as afiliações. Em Portugal, continua-se a fingir que não há interesses. Pior: continua-se a premiar os comentadores que distorcem.
Se um jornalista erra, é corrigido. Se um comentador mente, volta na semana seguinte. Sem contraditório, sem pedido de desculpas, sem filtro.
Comentar não é estar acima da verdade. É estar debaixo da responsabilidade.
Há soluções. Começam pelo básico: um cartão de interesses visível junto ao nome, com filiações partidárias e consultorias relevantes. É o que o Observador já faz comigo, identificando-me como membro da Iniciativa Liberal sempre que assino um artigo de opinião. A BBC faz o mesmo com todos os seus comentadores. Nós podíamos, no mínimo, começar por copiar.
Depois, é urgente distinguir, na grelha e no ecrã, o que é notícia e o que é opinião. Separar factos de palpite. Fazer jornalismo com assinatura e opinião com rosto completo.
E por fim, cabe aos canais públicos darem o exemplo. A RTP e a Antena 1 têm de ser vanguarda na pluralidade e na ética, não apenas espelhos dos vícios privados.
Não é censura. É higiene democráticaO espaço público precisa de luz, não de fumo. Menos comentadores com passado escondido. Mais jornalismo com identidades assumidas. Se queremos que a democracia sobreviva à indiferença e à desinformação, temos de exigir aos comentadores aquilo que exigimos aos governantes: responsabilidade e verdade. Sem isso, a opinião é apenas campanha com legendas pequenas. E o público, um eleitor enganado entre intervalos de publicidade.