Alexandre Borges - 7 ago. 00:20
A existência, agora em chinelos de praia
A existência, agora em chinelos de praia
Às vezes, uns dias desinteressantes são tudo aquilo de que precisamos para descansar. Dar folga ao músculo do espanto. Desligar os estímulos, recuperar o brilho no escuro.
Só há dois tipos de pessoas quando chega a hora de ir de férias – atenção, isto é muito importante, por exemplo, quando se trata de escolher companheiro para casar. Esqueçam os signos, a diferença de idades, os níveis académicos, socio-económicos, os interesses em comum, ouvir a mesma canção ou um ser do jazz de fusão e outro do reggaeton. Há os super-interessantes e os sem interesse algum. Os aventureiros, coleccionadores de histórias e lugares e os que sonham com uma semana em que ninguém os chateie. Enfim, os apaixonados pelo novo, pela descoberta, pelo mundo, conscientes de que só se vive uma vez e que o tempo é o bem mais precioso que temos, e os que sim, senhor, isso é tudo bonito, mas agora posso acabar o meu livro? Como é óbvio, estamos aqui para defender, de alma, coração e braçadeiras, os segundos – desde que não nos obriguem a ir para muito longe.
Vivemos numa sociedade hiper-positiva. Ao mesmo tempo que lemos umas coisas ou vemos uns vídeos de um minuto sobre a importância do equilíbrio, da harmonia dos contrários, das filosofias orientais do yin e do yang, princípio passivo e activo, ou de como os hindus têm entre as suas divindades centrais Vishnu e Shiva, deus da construção e deus da destruição, e ambos, para nossa perplexidade, são necessários e bons, fazemos precisamente o oposto: temos de estar sempre a fazer coisas. Qualquer coisa, não importa o quê. Fazer, tornou-se, por si só, um acto nobre, moralmente certo. Estar em actividade, em curso, a andar para a frente. É o equivalente pessoal ao vício capitalista no crescimento contínuo. Todo o contrário é visto como uma perda de tempo – e, no estranho catecismo contemporâneo, aquele que ninguém sabe quem escreveu, mas que vai colando partes daqui e dali, não há pecado maior.
Nunca tivemos tamanho horror ao vazio, ao nada, ao silêncio, à paragem. Por isso, a ideia das “férias” transformou-se, ferozmente, noutra coisa, mais agressiva, como um gremlin deixado à chuva. Não as podemos desperdiçar. Devem ser ocupadas, até ao último dos seus minutos, com uma viagem, e cada dia com uma aventura, e cada aventura executada com o devido equipamento, e tudo isto apropriadamente registado para divulgação contínua ou memória futura.
Há 20 ou 30 anos, ter uma casa de férias era o auge do sonho burguês, o pináculo do sucesso do cidadão trabalhador, o shangri-la por que a família suspirava o ano inteiro; hoje, mesmo para os poucos que a poderiam pagar, é entendida apenas como um desperdício. Ir sempre para o mesmo sítio? Todos os anos? Horror dos horrores. Preferimos viajar, trocar por hotéis manhosos em destinos diferentes, correr o risco de não gostar, de ter uma ou outra má experiência pelo prazer das boas, pôr a mochila cara às costas, os ténis caríssimos para a caminhada, o telemóvel e a câmara fotográfica que upa-upa ao pescoço, e lá vamos nós, professar a importância da frugalidade, à procura do sentido da vida, quanto mais longe, melhor.
Nada de especialmente errado nisso. Não éramos melhores pessoas quando tínhamos aquele T2 com marquise em Quarteira. Há, na verdade, uma certa beleza nesta troca de valores que fizemos entre o fervor consumista dos anos 80 e a orfandade espiritual dos 20/20. Mas voltemos ao cerne da questão: importam-se de deixar o tio acabar o livro dele?
Na verdade, o fervor consumista nunca abrandou; simplesmente, fartou-se de coleccionar coisas e, como quem compra roupa nova ou varia de prato no restaurante, passou a coleccionar “experiências”. A ideia continua a ser ter mais, acumular, encher: mais carimbos no passaporte, mais pins no mapa, mais fotografias em lugares como-se-diz-agora-icónicos, um catálogo maior na parede ou no mural da rede social para provar, quantas as vezes a si mesmo, que se tem uma vida interessante.
Mas, às vezes, uns dias desinteressantes são tudo aquilo de que precisamos para descansar. Dar folga ao músculo do espanto. Desligar os estímulos, recuperar o brilho no escuro, parar, arrefecer, chinelar pelo chão conhecido, não ter de fazer uau para coisa alguma. É extraordinário descobrir, mas, se habituamos o olhar ao constante estímulo esmagador de lugares completamente novos, como conseguirá ele percepcionar ainda as pequenas coisas escondidas na normalidade?
Não sei se há mundo que chegue para a nossa ânsia de coisas e experiências novas; talvez tenhamos de o mandar aumentar. Ou, simplesmente, no grande esquema rotativo do Cosmos, voltemos, daqui a algum tempo, a descobrir a importância dos dias desinteressantes, aqueles de que se volta sem absolutamente nada para contar, em que, em vez de se tentar ver o máximo de coisas possível, se tentou ver o menos, descansar no familiar, ter em actividade menos partes do cérebro, que, sozinho come 25% de toda a energia que consumimos por dia, ler enfim o que há tanto se comprou e acumulou na estante. Voltar ao mesmo lugar, sem problemas de consciência acerca do que se esteja ou não a perder, de preferência até ao lugar de origem, à casa de família, de partida, que é onde se fica mais pequeno, mais perto de não existir. Antes de poder voltar a crescer outra vez.
Sim, o mundo é extraordinário. Mas e um alpendre? Já viram bem uma rede num alpendre?