observador.ptNuno Lebreiro - 7 ago. 00:15

A ilustre autarquia

A ilustre autarquia

No fim, junta-se a fome com a vontade de comer, pelo que um dos grandes legados da democracia não pode também deixar de ser o verdadeiro elevador social nacional em que se tornou a carreira partidária

Em 1900, no livro A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queiroz explicou candidamente que Portugal não era mais do que uma bela fazenda governada por uma “parceria”. Esta, composta por cerca de “trinta sujeitos”, mandava e governava a dita fazenda, tendo nas mãos os destinos dos restantes milhões de portugueses que nela passavam a vida, nuns casos a trabalhar, noutros simplesmente ���a olhar”.

Não faço ideia se serão somente trinta indivíduos aqueles que mandam nisto tudo. Ajustados a uma população que, entretanto, cresceu de cinco a seis milhões para cerca de dez, talvez a parceria do Século XXI ande já nos cinquenta, sessenta indivíduos ou, mais arrojado, levando em linha de conta o crescimento económico do Estado — como é evidente, aliás, para a maioria da população que, de fora, olha, ou pasma, com inveja e ranger de dentes, os pulos sociais que a militância política, junto com o chamamento de Lisboa, semeia pela província abandonada. Tudo é mau. Desde logo, até a designação utilizada pelos próprios como carimbo de competente especialização, a noção de “político de profissão”, ou seja, o tal que envereda pela “carreira política”, logo trata de arrepiar a pele do pescoço dos espíritos mais atentos. Estranho é, apenas, que ninguém repare, pois que “carreira” e “partido” são duas noções que, no campo dos princípios, aqueles em que qualquer camarada, companheiro ou com-militante se besuntam e perfumam, aparecem de imediato como contraditórias. O partido, ou seja, a “parte” da representação popular democraticamente escolhida, significa, ou pretende significar, trocas de ideias, discussões acaloradas, opções estratégicas, sonhos e quimeras, debates, quezílias, dilemas entre conflitos de valores fundamentais, grandes discursos e o triunfo magno das ideias faladas, discutidas, e não impostas a murro, calhau ou baioneta — ou seja, não se sabe, a cada momento, quem ganha a peleja.

Já “carreira”, esse é um termo que significa todo o oposto. Tal como o autocarro, o destino da viagem, não apenas está previamente traçado, como, mais importante, há a absoluta garantia que é desse modo planeado e pré-definido que a viagem decorrerá. O progresso é automático, as gerações substituem-se, os cargos trocam-se, mas, a pouco e pouco, paragem a paragem, sobe-se na “carreira”, começando por varrer as salas das sedes partidárias, passando para arregimentador de votos em assembleias plenárias e, depois, alçando-se a assistente, assessor ou secretário de vereação, daí, sobe-se de grau, ou nível, passando o arregimentador de votos a arregimentador de arregimentadores de votos, o que lhe permite, com jeito e empenho, o próprio do lugar de vereador de onde, já com motorista, a seu tempo, se faz deputado, secretário de estado e, em auge, o cume apenas permitido aos mais brilhantes tenebrários de cada geração, a cadeira de ministro.

Ora, uma questão subsiste. Como é conciliável o incerto e problemático debate estratégico da Nação com a carreira garantida no funcionalismo político? Pois bem, a resposta é fácil de alcançar: no final, quezílias sobre quem fica com o quê à parte, a verdade é que pensam todos da mesma maneira, fazem todos por igual, pensam todos o mesmo — aquilo que é popular e oferece direitos de publicidade eleitoral no jornal, na TV e na rádio. Assim posto e explicado o esquema, agora democrático, nestes estáveis e respeitáveis termos, como poderia a parceria negar o acesso do secretário de estado e do ministro ao remanso atapetado e pleno de sofás de couro dos seus clubes privados? Não podia. Daí a plena democratização onde, em lhes abrindo a porta e mostrando o fausto dos seus interiores, quem manda acena a cenoura que excita o mais idealista dos caciques eleitorais. Em troca, como bilhete, milhares e milhares de posições se mandam criar, nomear e preencher, desde os motoristas, a rodos, às secretárias, passando pelos “técnicos” da respectiva especialidade que, no Diário da República, saltam das comissões políticas das secções e distritais para os “gabinetes” do secretário de estado e do ministro.

Eis, pois então, em todo o seu esplendor e fulgor, a brilhante carreira partidária, o expoente máximo do funcionário político que, organizado em “partes”, cada qual com a sua cor, sinalética de punho, mão ou dedos, hino e lema, tudo muito patriótico e pejado de idealismo, assim acaba gerindo o país. Gerindo, atente-se, não governando, que isso é outra coisa. Aliás, e nem de outra forma poderia ser, se se passa o tempo útil da “carreira” a tratar de votos e de cargos, de calendários e orçamentos eleitorais, de estratégia alpinista para garantir que, a cada fornada geracional, se ocupa aquele ou aqueloutro poiso, se se passa o tempo nisto, ora, pode-se até perceber muito de muita coisa, desde as relações humanas aos equilíbrios de poder, dos compromissos práticos e das parcerias estratégicas, agora do que não se percebe nada é de como governar o país, ainda que em nome do qual, a cada minuto e segundo do dia, se esbraceje, se grite, se discorde, se cante, se chore. No final, sobra, naturalmente, o teatro.

Quem manda, então? Ora bem, a tal parceria. A parceria é que manda garantindo que as coisas se mantêm como esta, e ela recebe o seu quinhão. E manda tanto mais quanto esta gigantesca rede clientelar de “carreiras” dela depender, assim cimentando, em cima do polvo que criou, o seu próprio poder — ao qual, em lhe querendo cheirar, tocar, mexer, comer e beber, cada pequeno tentáculo do enorme polvo político-partidário presta a devida vassalagem — e apenas assim se consegue explicar o paradoxo que permite que se façam carreiras nobilíssimas, vistosas, importantíssimas, assentes nas eternas promessas de “progresso” e “mudança”, isto enquanto acabam sempre, ou quase sempre, garantindo que tudo fica absolutamente na mesma.

Façam-se umas décadas, senão séculos, disto e não sobra muito mais do que aquilo que temos hoje, e que toda a gente vê — um exército de inúteis práticos, especializados na arte de vender princípios que não conhecem, em gerir coisas que não são suas, em planificar estratégias que não compreendem, mas apenas repetem, decoradas, assim como os slogans e hinos das respectivas cores partidárias. A cartilha, dada por quem manda, claro, sai para os ouvidos de quem faz, é certo. Mas, depois, para justificar, logo corre também para as mentes de quem legitima o esquema todo, o jornal. E assim pode ser porque, tal como a carreira partidária, o mesmo se processa também em todas as outras carreiras corporativas, desde logo na redacção. No fim, tudo se interliga e repete: desde o político ao jornalista, do comentador ao locutor, bem como da apresentadora ao entretainer, dos artistas à espera do subsídio aos pretendentes a humoristas, isto no mundo público e publicado, um mero reflexo, e refluxo, da realidade última que também discorre com naturalidade nas carreiras de gestão da empresa pública, de regulação do interesse público, da própria academia, no mundo das gigantes privadas, seja por onde for, num país de primos e enteados, amigos e cunhados, assim se vai aplicando religiosamente o princípio de Peter — lambendo-se botas, aproveitando-se o conhecimento deste ou daquele, vilipendiando-se este ou aqueloutro, sobe-se na carreira até atingir o nível máximo para o qual, manifestamente, não se tem qualquer competência.

Progressivamente, o carreirismo burocrático, como caruncho, tomou conta de todo o sistema — incompetente, cego, surdo, mas vocal, bem vocal, de dedo em riste, explicando sempre como com mais “investimento”, com maior dedicação à “causa pública”, procurando “resolver os reais problemas das populações”, agora é que se vai ser bem-sucedido na arte da governação. A seu tempo, naturalmente, a coisa torna-se insustentável, acabando invariavelmente na falência — algo que os portugueses conhecem muito bem. Ora, esta última, depois de uma tentativa de enfrentar os donos disto tudo e remar contra a dita parceria — leia-se o esforço inglório de Passos Coelho entre 2011 e 2015 —, resolveu-se vendendo politicamente o país, desde logo a sua soberania à magna direcção de Bruxelas que ora decide, impõe e escolhe o destino estratégico da coisa, incluindo os meios e os objectivos a serem alcançados pelo país — que, em troca do assentimento do governador local, vê generosamente cabimentados com pompa e circunstância no orçamento quinquenal. Assim, transformando subsidariedade em subserviência, continuam chovendo os fundos e se garantem as contas nos mínimos que mantêm os edifícios de pé, tal como afiançam a estabilidade das rendas, dos lucros e dos impostos que pagam toda a enorme rede tentacular que suporta, e alimenta, a parceria.

Cento e vinte e cinco anos depois, o país continua, portanto, sendo a tal fazenda da qual Eça falava: belíssima à vista e ao cheiro, óptima nas férias, fiel destino de turismo onde se aluga a preço módico aquilo que os indígenas não conseguem alienar, ou estragar — sol, mar e uma tradição milenar de cozinhar restos e aproveitamentos. Do mesmo modo, em particular depois de 2015, continua bem mandado pela dita parceria, apenas que agora reduzida ao papel de capataz de feudo. Já o Governo é, de facto, uma enorme autarquia que vive como habitualmente gerindo a minudência orçamental e decidindo, por decreto, o traçado das estradas e dos horários no centro de saúde, os regulamentos escolares, ou os metros de distância entre cada casa e a árvore mais próxima — já governar e definir a política do longo prazo, isso não tanto. E assim continuará a ser enquanto os fantoches políticos fizerem, de cabeça baixa e mão estendida, aquilo que os verdadeiros donos mandarem fazer.

Quanto à parceria, essa lá vai feliz e contente, navegando a coisa. Por um lado, vilipendiando quem a afronta — em especial o malandro, sacripanta, estoura-vergas Passos Coelho a cada vez que ousa aparecer em público —, por outro, promovendo quem não a chateie. O dinheiro, como se sabe, não tem pátria, nem hino, ou sequer vergonha. Daí que trocar a soberania de um povo pela garantia de uma boa posição regional não tenha sido algo que perturbasse almas tão requintadas — garantidas as concessões, Bruxelas que trate, e pague, do resto. Já ao povoléu, em particular aquele que não se contenta apenas com “olhar”, e tal como quase sempre desde há mais de duzentos anos, a quem quiser sonhar mais que isto, sobra vergar a mola, varrer as esplanadas e sacar uns cobres aos camones — ou então emigrar.

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