observador.ptJosé Veiga Sarmento - 7 ago. 00:16

Quinze a zero, está claro?

Quinze a zero, está claro?

O acordo entre Trump e a Presidente da Comissão Europeia é ao mesmo tempo tão claro e brutal que marca uma nova era para a Europa, para o Mundo e para o papel da Europa no Mundo.

Nos últimos anos, muito boa gente pensadora tentou perceber o significado e o possível impacto das esferas de influência – quais placas tectónicas – na geoestratégia global. Após o colapso da União Soviética, e apesar do monop��lio do poder político e militar americano, a paisagem de vitória do liberalismo capitalista mostrava alguns sinais perturbadores: o poder nascente e indisfarçável da China em busca do seu lugar no mundo, o nervosismo da Rússia à procura do seu tempo perdido e a etérea leveza da Europa com o sonho da recuperação do seu papel de guia moral da humanidade. As pequenas e médias potências, essas, continuavam dispostas a conseguir por direito próprio um lugar na foto de família planetária. A América – que se mantinha como polícia de último recurso e como fonte de revoluções tecnológicas que nos prometiam uma nova dimensão existencial – deixava transparecer algum desnorte. Neste novo quadro começavam a despontar dúvidas sobre o futuro das democracias e sobre as possíveis alterações nas relações de soberania.

Apesar do muito que foi sendo escrito – e do intensivo recurso à História para chamar a atenção do que os homens são capazes de fazer e de estragar – os responsáveis políticos e as opiniões públicas europeias dos últimos vinte anos mostraram-se olimpicamente indiferentes aos sinais de alarme que por vezes vinham acima da linha de água. E foi assim que chegámos aos dias de hoje, com a confirmação de algumas das previsões:  a China assume-se como pretendente natural à liderança global e a Rússia provou, uma vez mais, a natureza sanguinária que é a sua marca desde Ivan o Terrível. Quanto à Europa, fruto das divisões internas, não conseguiu afirmar-se como uma força de interposição política e económica entre as grandes potências. A grande surpresa, no entanto, acabou por acontecer, com grande estrondo, na América, onde o voto recoloca Trump no poder; apesar de desprovido das mais elementares características de urbanidade e de decência, de ser indiferente à sorte dos outros fora dos seus círculos de influência e de desconhecer ou desprezar o património jurídico que garante os direitos de cada um numa sociedade organizada, Trump seduziu e hipnotizou a maioria do eleitorado. Em resultado, a mais antiga e importante democracia do mundo moderno avança para o autoritarismo a golpes de teatro promovidos nas plataformas sociais e na televisão, reconhece apenas a lei do mais forte e aceita a corrupção como um modo adequado de exercício do poder. Esta mudança de paradigma representa para a Europa, histórica aliada da América, o fim da ligação atlântica privilegiada e da protecção militar de que beneficiava há oito décadas. Num curto espaço de anos, ocorreram alterações tão substanciais no nosso mundo, que os arquétipos e conceitos por que nos regíamos, deixaram de existir.  Agora, é tempo de percebermos onde estamos, analisar a situação e ver o que podemos fazer. Pensar que está tudo igual, mais não trará que dissabores e desilusões.

Vejamos os factos.

O acordo entre Trump e a Presidente da Comissão Europeia, obtido a 27 de Julho ao fim de uma hora de conversa num hotel de Trump na Escócia, é ao mesmo tempo tão claro e brutal, que marca uma nova era para a Europa, para o Mundo e para o papel da Europa no Mundo. Aí se estabelece que, genericamente, as exportações europeias para a América passam a pagar 15% de direitos e que, inversamente, as exportações americanas para a Europa devem estar isentas. Colocar por escrito esta desigualdade de direitos, é algo que acontece, mas apenas quando um País invade, conquista e submete outro, impondo impostos a pagar. A diferença aqui no pagamento deste imposto, é que ele recai formalmente sobre os consumidores americanos, mas vai, inevitavelmente, ser partilhado pelo exportador, por este temer não conseguir vender a mercadoria a tais preços finais. Neste citado acordo, encontra-se uma disposição aparentemente generosa, repondo para alguns itens como os aviões, peças de aviões e outros produtos, as reduzidas tarifas em vigor no início do ano. Esta disposição é apresentada como um alívio para a indústria europeia, pois a venda dos Airbus tem de facto uma enormíssima importância para a Europa. Mas esta medida, na realidade, protege as Companhias de aviação americanas que preferem, para a sua frota, aviões da Airbus e para as quais o aumento de 15% no custo dos aviões teria um impacto catastrófico, que poderia até pôr em causa a sua sobrevivência; de facto, não se importando com o aumento de custos para o consumidor americano, para Trump a saúde financeira das Companhias aéreas é uma questão diferente.  A submissão formal da Europa fica ainda mais colorida com duas disposições adicionais que comprometem a Europa a investir 600 mil milhões de dólares nos Estados Unidos e também a lá comprar 750 mil milhões de produtos de energia nos três anos que ainda faltam para o término do mandato de Trump. Obrigar os vencidos a pagar ao soberano é um mecanismo tradicional dos conquistadores: foi o caso dos Mongóis quando ocuparam parte do mundo, o dos árabes quando se instalaram na Península Ibérica ou o dos Otomanos na sua expansão imperial. Este mesmo mecanismo foi utilizado por Hitler sobre os países ocupados na II Guerra Mundial, em especial sobre a França que acabou por financiar grande parte do esforço de guerra nazi. Mas neste nosso acordo de 2025, as compras de produtos e os investimentos a que a Comissão se comprometeu, não serão por ela realizados, mas sim pelas empresas privadas que não são sequer partes no acordo e que são quem, no fim, decidem o que comprar e por que preço. Ninguém entende o que valem ao certo estes compromissos. Mas a figura da submissão fica indelevelmente carimbada. Chave de ouro deste acordo é o que fica estabelecido quanto à possibilidade de a América poder alterar condições acordadas, sempre que entenda que está em causa o seu interesse.

É legítimo questionar como pôde a Comissão Europeia descer tão baixo. É a interrogação que cinicamente fazem alguns líderes europeus, quando sabem perfeitamente que os alemães queriam o acordo por causa da indústria automóvel, os franceses por causa da Airbus e da esperança (gorada) de proteger vinhos, espumantes e espirituosos, os italianos pelas razões anteriores e ainda para preservar uma aliança política com Trump e os polacos por causa do perigo russo, fantasma que atemoriza muitos dos restantes membros da União. Para além das questões económicas e das fortes pressões dos exportadores, a consciência de que militarmente a Europa não existe, levou à submissão. Como poderia a Comissão desafiar Trump a levantar as tropas americanas da Europa se ninguém aqui, Governos ou população, está disposto a sacrificar-se para um eventual esforço de guerra com a Rússia? Ajoelhar-se, e sonhar com uma protecção militar (de cuja garantia ninguém está realmente convencido), foi a saída lógica. Só que, a partir de hoje, a Europa desceu na classificação. Pode muito bem continuar a falar com a China, a Rússia, ou com os BRICS, mas fá-lo na condição de vassalo americano.

Abordemos, agora, os próximos capítulos.

O panorama global ganha contornos mais claros. Duas grandes potências, América e China, dispõem de estatuto e de força para impor o respeito e a obediência dos restantes países. A validade do aparelho de relações multilateral – ONU, FMI, OMS, OMC, entre outros – terminou. A legitimidade internacional decorre agora exclusivamente do uso anunciado da força, enquanto o xadrez se reorganiza. A Rússia passa a ser um apêndice da China, incómodo é certo, mas útil no futuro. Pelo seu lado, a Europa posiciona-se como um acessório contrariado da América, sem direito a tempo de antena próprio, e sabendo que está à mercê de tornar-se moeda de troca para futuros acordos americanos com a China. Esta é a sina dos escravos.

Quanto tempo vai resistir a Europa como União à medida que se forem reforçando os comandos económicos e políticos da América sobre alguns Estados Europeus? Como vão ser conciliados os esforços financeiros para fins militares nos Países Europeus, se tal implicar a afectação de menos meios ao Estado Social? Como vão resistir as economias exportadoras europeias com o redireccionamento das exportações chinesas que eram dirigidas à América? Convém realçar que nenhuma destas questões tem, obrigatoriamente, um desenlace negativo. Mas para serem ultrapassadas, implicam um sobressalto institucional europeu que até hoje foi impossível de obter. Com os nacionalistas pró-Trump e pró-Putin no poder ou à sua porta, será a redenção europeia ainda possível? É difícil de acreditar com o que sabe hoje… Mas porque não, se na História já aconteceram involuções bem mais complexas?

Por fim, nunca esquecer que nada na vida, com excepção da morte, está gravado na pedra. Não há predeterminação. O fulgor americano que anima as notícias diariamente pode vir a ser atingido mortalmente pelos tratamentos financeiros não ortodoxos a que Trump sujeitou o sistema. Um colapso é possível e, para muitos, é mesmo inevitável. E nesse caso, até Trump terá dificuldade em manter o seu Mar-a-Lago. Por outro lado, a saúde financeira da China é uma face problemática do sucesso chinês. Os Historiadores têm presente o que aconteceu no Séc. XVII na China quando a queda do comércio para Europa levou ao caos e, consequentemente, à alternância de uma nova dinastia. Xi Jinping só é inamovível se a economia chinesa continuar a funcionar bem. Mas, na verdade, estes são cenários dramáticos que neste momento relevam do domínio da ficção. Não vale a pena morrer a sonhar.

Como Churchill tentou explicar aos franceses, quando em 1940 sofriam a invasão militar nazi, não é por ser difícil resistir que a rendição é a única solução. O problema é que, nos dias de hoje, líderes como ele, nem com uma grande candeia se encontram.

NewsItem [
pubDate=2025-08-07 01:16:02.0
, url=https://observador.pt/opiniao/quinze-a-zero-esta-claro/
, host=observador.pt
, wordCount=1607
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2025_08_06_957907437_quinze-a-zero-esta-claro
, topics=[europa, estados unidos da américa, opinião, mundo, américa, economia, união europeia, comércio]
, sections=[opiniao, economia, actualidade]
, score=0.000000]