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Os incendiários e a psiquiatria

Os incendiários e a psiquiatria

Há décadas que o cenário médico-social é conhecido e os problemas estão identificados. Só falta fazer: melhor assistência sociofamiliar leva a melhor saúde mental.

Uma vez observei um rapaz da serra do Açor que me confessara a alegria de ver a roda viva dos carros dos bombeiros e a azáfama dos aviões e dos helicópteros num bailado sobre as labaredas crepitantes. Este segredo era condimentado por uma narração tão épica quanto infantil. Naquelas serranias onde nada acontece, surgem sirenes e reportagens televisivas. Que esfusiante excitação!

A evolução humanista da compreensão do crime para a compreensão da mente responde a uma dialética de duas perspetivas do delito: a vertente jurídica e a vertente psiquiátrica. O Direito será normativo e lógico, porfiará a responsabilidade e a culpa; a Psiquiatria será flexível, penetrará o entendimento dos mecanismos do cérebro.

Antes de Cesare Lombroso, em 1876, ter falado do “Homem Delinquente”, já o nosso Código Penal de 1852 registava no seu art. 22.º: “Somente podem ser criminosos os indivíduos que têm a necessária inteligência e liberdade.” Portanto, cerca de 50 anos depois da Revolução Francesa, chegava a Portugal um assomo de dignidade para os doentes mentais. Recorde-se que, anos antes, abrira o primeiro hospício para alienados em Portugal, o Hospital de Rilhafoles, em Lisboa, rebatizado de Hospital Miguel Bombarda. Mais tarde, o Código Penal de 1886 também se referiria ao internamento “dos loucos delinquentes no manicómio” (art. 47.º) e, similarmente, o atual Código Penal de 1982 (art. 91.º).

As manifestações dos esquemas mentais determinam as regras do comportamento. O modelo biopsicossocial entende o homem em sociedade, portador de fatores de risco, mas também de fatores de proteção. Precisamente por isso, sofre a influência do meio, das esferas familiares, sociais, religiosas, profissionais. Tal modelo foi rapidamente assimilado pela Escola Americana de Psiquiatria que, em 1980, viria a conceptualizar a doença mental segundo cinco eixos diagnósticos, isto é, de acordo com cinco facetas, todas elas interligadas, no clássico DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Esta nomenclatura “revolucionária” viria a seria replicada ou adaptada em outras configurações, como é o caso das comorbilidades. Recorde-se, então, os clássicos cinco eixos: I – Doença mental primária propriamente dita; II – Personalidade; nível de inteligência; III – Doenças ditas “físicas ou orgânicas”; IV –​ Fatores de stresse; V – Pontuação sobre o funcionamento global do indivíduo.

A maioria dos incendiários examinados no âmbito de perícias de psiquiatria forense estão afetados na sua inteligência, o que condiciona a vontade e a liberdade para decidir. Perturbação do desenvolvimento intelectual, debilidade mental, oligofrenia, atraso mental, são denominações diferentes que querem dizer basicamente o mesmo: a existência de um funcionamento intelectual com limitações significativas em diferentes campos do quotidiano, cujos exemplos mais visíveis são o comunicar, o cuidar-se, o exercitar de papeis sociais, o trabalho, a segurança, os tempos de lazer. Donde, se perceber a baixa auto-estima, a dependência, as dificuldades para o pensamento abstrato, o risco de poderem ser explorados ou influenciados por terceiros de um modo perverso. Dito de outro modo, em articulação com o Direito penal, tais indivíduos não têm a inteligência bastante para se autodeterminar, não distinguem claramente o certo do errado, o bem do mal, o lícito do ilícito.

A nível dos testes de inteligência – de que é exemplo o WAIS, Wechsler Adult Inteligence Scale –, quase todos apresentam um Quociente de Inteligência (Q.I.) inferior a 70, quando o Q.I. normal varia entre 90 e 110. Numa estimativa, a partir de extrapolações, é admissível que por cada 100 indivíduos no seio da comunidade existirá, pelo menos, um débil mental, e a maior parte destes (cerca de 85%) são considerados débeis ligeiros – o que corresponderá a um Q.I. entre 50 e 69 –, ou seja, vivem como se fossem crianças de 9 a 12 anos de idade. Menos comuns são os débeis moderados, que se equiparam a crianças de 6 a 9 anos de idade, com um Q.I. entre 35 a 49.

A perturbação do desenvolvimento intelectual tem causas diversas, assim sintetizadas: genéticas, exposição pré-natal a infeções e toxinas, prematuridade, fatores socioculturais. Sobre estes últimos, sempre se agigantaram as minhas preocupações, como médico e como perito. Em 1992, num contributo para um volume sobre “Ética em Psiquiatria”, tive ocasião de referir os dilemas do psiquiatra forense em sede de perícia. À sua frente não está um doente, no sentido hipocrático da relação médico-doente, na medida em que o que está em causa é uma perícia médico-legal com um alegado criminoso compelido a comparecer a esse ato. Todavia, o perito não deverá ser insensível à globalidade do contexto biográfico, com todo o cortejo de acontecimentos de vida traumáticos que o examinando vivenciou, muitas vezes logo a partir da primeira infância: vítima de incúria de outros, na família e na sociedade, o repositório de traumas é comummente um dado chocante. É, então, que ao psiquiatra vocacionado para o compreender e explicar é solicitado que opine sobre diagnóstico, imputabilidade e perigosidade, em sede de Direito penal, para além de responder a eventuais quesitos formulados.

O conhecimento da história clínica e do exame mental são imprescindíveis à elaboração do Relatório Pericial. Questões importantes são afloradas, como as disfunções familiares e sociais, isto é, que estão para além do examinando e habitam o meio envolvente. Se aplicarmos estas inquietações do perito ao exemplo dos incendiários débeis mentais, as perguntas parecem óbvias e será desejável não temer fazê-las. Assim, por hipótese, é de esperar que uma qualquer aldeia do mundo rural e florestal, imaginemos de 300 habitantes, albergue na sua comunidade, pelo menos, três doentes com perturbação do desenvolvimento intelectual. Quem são estes indivíduos? Como ocupam os seus dias? Quem são os membros da família? Há fome e pobreza? Será que sofrem de doenças associadas, como a epilepsia ou alcoolismo? Frequentam alguma escola especial ou instituição de apoio? Existe algum projeto de reabilitação ou reinserção social na aldeia ou no concelho? O assistente social contacta regularmente essa família? São acarinhados pela comunidade? Ou, pelo contrário, são ridicularizados, excluídos, injuriados, explorados, agredidos, alcoolizados por terceiros? Ao fim e ao cabo, quem ampara estas pessoas que têm uma idade mental de crianças entre os 6 e os 12 anos? Todas estas perguntas parecem tão inquietantes quão pertinentes.

Em relação aos incendiários, jamais poderemos ignorar que o alcoolismo é uma patologia assaz frequente em Portugal. Desde longa data que estamos nos primeiros lugares da linha da frente das cirroses alcoólicas e do consumo de álcool per capita. Agora, imaginemos um indivíduo que, para além de ser um débil mental, é também alcoólico. E, para agravar o quadro, se o mesmo indivíduo for também um epilético? O estreitamento do estado de consciência (por exemplo, obnubilação), a euforia, o fascínio pelo fogo, a desinibição, o arrojo, as condutas impulsivas propiciam comportamentos socialmente reprováveis aos olhos dos outros, mas que para os próprios não são tidos como ilicitude ou algo de errado, precisamente pelo não entendimento cabal das normas sociais.

Também os esquizofrénicos se podem assumir como incendiários. Correspondem a um pouco menos de 1% da população. Esta psicopatologia é uma doença da realidade, uma afeção do cérebro que surge no adolescente ou no adulto jovem. Estes doentes têm delírios e alucinações. Ou seja, vivenciam pensamentos em que só eles acreditam, de que são espiados, filmados, fotografados por uma polícia secreta, comandados por satélites, por telefones, pela internet, etc. Ou ouvem vozes que falam deles ou lhes dão ordens. Têm visões de pessoas ou ainda de cenários que só eles experienciam. Se, por vezes, o conteúdo dos delírios é mais tecnológico, noutras, pode apresentar-se sob uma forma místico-religiosa, com anjos ou demónios à mistura.

Usualmente, os esquizofrénicos não tratados não têm crítica para os sintomas psicóticos e podem reagir com desagrado ou agressividade a qualquer contra-argumentação. Acham que são donos de certezas inabaláveis, com todos os riscos sociais inerentes. É de esperar que possam surgir comportamentos excêntricos da parte destes doentes, principalmente se não estiverem a tomar a medicação adequada. Por regra, são conhecidos da comunidade, mas temidos pela sua imprevisibilidade e eventual perigosidade, embora se saiba, hoje em dia, que não são mais perigosos do que a população geral. É admissível que possam episodicamente ser incendiários. Nas perícias da psiquiatria forense – apesar de a inimputabilidade ser uma conclusão muito frequente neste tipo de examinados psicóticos – constam, por norma, no relatório, recomendações para o tratamento da afeção e outras informações relevantes para o tribunal.

Trabalhos deste século parecem confirmar o perfil do incendiário que encontrámos nas décadas de 1980 e 1990 circunscrito ao âmbito da psiquiatria forense: homem, solteiro, baixa escolaridade, QI baixo, desempregado, oriundo de uma família disfuncional, alcoólico e com outras comorbilidades, que comete o crime na área da residência por motivo pueril

Existem outros incendiários cuja patologia de base é uma “neurose do carácter”, ou seja, indivíduos descritos desde a infância como agressivos, mentirosos, desordeiros, indisciplinados, com múltiplas histórias de delinquência: os psicopatas ou antissociais. Frequentemente, são consumidores de todo o tipo de substâncias psicoativas. Funcionam no registo do “já” e “agora”, impacientes, rebeldes, sem escrúpulos, com uma certa ambição de uma grandiosidade não exequível. Exigentes dos outros para a satisfação das suas necessidades mais imediatas, envolvem-se em rixas, acidentes rodoviários, burlas, furtos. Não se vinculam afetivamente a ninguém. Por vingança, impulso ou outra razão qualquer fútil, poderão tornar-se incendiários. As polícias e os estabelecimentos prisionais conhecem-nos sobremaneira. Em Portugal são quase sempre considerados imputáveis em sede judicial, embora a figura da imputabilidade diminuída seja de considerar em casos muito especiais, principalmente por causa de vulnerabilidades temperamentais genéticas ou certos contextos na ocorrência dos factos.

Outras patologias psiquiátricas, como a epilepsia (exceto se associada ao alcoolismo), depressão, demência, piromania, isoladamente vista como perturbação do controlo do impulso (fora do atraso mental), são excecionais nos incendiários. Numa assunção arriscada, os piromaníacos descontrolados atuam de dia e os psicopatas perversos atuam de noite. Estes, sim, conhecendo a ilicitude do crime. Convirá recordar que muitos dos incêndios se iniciam à noite!

Trabalhos deste século parecem confirmar o perfil do incendiário que encontrámos nas décadas de 1980 e 1990 circunscrito ao âmbito da psiquiatria forense: homem, solteiro, baixa escolaridade, débil quociente de inteligência (QI baixo), desempregado/tarefeiro ocasional, oriundo de uma família disfuncional, alcoólico e com outras comorbilidades, que comete o crime na área da residência por motivo pueril.

Poderá surpreender muitos dos justiceiros que pululam nas redes sociais, mas a inimputabilidade é uma conclusão frequente da perícia. Como já foi mencionado, a imputabilidade diminuída (com atenuantes) surge em certos casos limite ou fronteira. A tríade liberdade-inteligência-vontade parece estar francamente prejudicada. Contudo, se estes comportamentos incendiários forem recorrentes, creio dever ser ativada a Lei de Saúde Mental, Lei n.º 35/2023, de 21 de julho. Não só para os artigos que impõem internamentos involuntários (outrora designados de compulsivos), mas também para os que preconizam a proteção e promoção da saúde mental, reabilitação psicossocial, estruturas residenciais, centros de dia e reinserção profissional.

Há décadas que o cenário médico-social é conhecido e os problemas estão identificados. Só falta fazer: melhor assistência sociofamiliar leva a melhor saúde mental!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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