Observador - 8 ago. 00:09
Traços elementares do racionalismo cartesiano (parte I)
Traços elementares do racionalismo cartesiano (parte I)
A dúvida cartesiana não resulta da experiência do erro sistemático, mas sim da necessidade de separar o verdadeiro do falso; trata-se de uma dúvida voluntária, metódica e, posteriormente, hiperbólica.
A filosofia cartesiana assinala um ponto de viragem na história do pensamento ocidental. Contrariando um pressuposto partilhado pela maioria dos pensadores renascentistas, Descartes não partiu da credulidade espontânea e acrítica sobre o funcionamento da natureza, nem evidenciou, tampouco, a mesma reverência que os seus contemporâneos face à filosofia clássica. Motivado pela Revolução Científica em curso e pela necessidade de refutar o ceticismo radical, o seu principal escopo assentava na criação de um sistema filosófico que fosse capaz de ancorar os recentes progressos na área da física.
Descartes procurou, então, estabelecer um método que lhe permitisse proceder a uma distinção objetiva entre o que é falso e o que é verdadeiro. Note-se, que certas nuances metodológicas oriundas da filosofia medieval ainda perduravam na época em que completara a sua formação académica. Tendo estudado seis anos no colégio dos jesuítas, em La Flèche, onde imperava um paradigma de ensino preponderantemente escolástico, o filósofo francês evidenciaria posteriormente o seu descontentamento face ao modelo das disputationes. Era inquebrantável a sua convicção de que tudo aquilo que possui um caráter incerto é incongruente com a ciência, pois que esta carece de um método que viabilize a perceção da ocorrência de erros.
Importa lembrar que a escolástica se desenvolveu em estreita relação com o aristotelismo, herdando, entre muitas outras coisas, a sua física; a física aristotélica contemplava uma noção qualitativa do ser, designando de “forma substancial” o princípio interno de onde brota a ação de um corpo, ou seja, o seu movimento. Por seu turno, no sistema cartesiano o cosmos é interpretado como uma espécie de extensão algorítmica, pelo que todos os fenómenos podem ser explicados matematicamente. Quer isto dizer que Descartes prescinde do atributo qualitativo do ser, afirmando que a natureza é mensurável e que, nesse sentido, o mundo físico é essencialmente quantitativo.
Do ponto de vista epistemológico, o filósofo francês distancia-se da tradição aristotélico-tomista — cuja pedra basilar era a indagação sobre a existência do objeto em causa —, advogando um novo espectro de análise que se prende não apenas com a relação do pensamento com os seus correlatos sensíveis, mas sobretudo com as características do próprio ato noético, que extravasa qualquer possível correspondência com a corporeidade do mundo. O pensamento nem sempre consegue identificar uma realidade exterior que se lhe adeque, sendo por isso relevante interrogar a sua articulação com o mundo.
Terá sido a matemática a desvelar a pertinência desta questão a Descartes, pois que o conhecimento matemático valida a afirmação de que existem conceitos que, não tendo um correlato sensível, contêm, todavia, uma realidade própria que pode ser inteligida pelo intelecto humano. O racionalismo cartesiano interpela esta ciência não apenas como objetivamente precisa quando aplicada ao mundo, mas outrossim como uma possibilidade de libertar a razão de elementos qualitativos gerados pela apreciação de dados empíricos. Descartes pretendera mostrar, portanto, que o intelecto é capaz de conhecer por si mesmo, isto é, sem que haja necessidade de recorrer a qualquer conteúdo sensório-percetivo. O processo segundo o qual o ser humano conhece as coisas, ou seja, o conjunto de funções cognitivas que conduz à obtenção de conhecimento, torna-se então o eixo primordial do pensamento filosófico; este redirecionamento gnosiológico acabaria por assumir uma importância axial no desenvolvimento da cultura ocidental, razão pela qual se atribui ao matemático francês o mérito de ter fundado a filosofia moderna.
A dúvida cartesiana não resulta da experiência do erro sistemático, mas sim da necessidade de separar o verdadeiro do falso; trata-se de uma dúvida voluntária, metódica e, numa fase posterior, hiperbólica. Epistemologicamente, é exigível que tudo aquilo que possa suscitar ambiguidade seja questionado, ao invés do que sucede na regência da realidade quotidiana, em que o ser humano orienta a sua práxis tendo em conta aquilo que é verosímil. Na segunda parte do Discurso do Método, baseando-se num procedimento lógico utilizado pelos geómetras, Descartes apresenta os quatro preceitos que, no seu entender, são indispensáveis para assegurar a validade epistémica do conhecimento:
“O primeiro consistia em nunca aceitar como verdadeira alguma coisa sem a conhecer evidentemente como tal: (…) em não incluir nos nossos juízos senão o que se apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida. O segundo era dividir cada uma das dificuldades que eu havia de examinar em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor as resolver. O terceiro, conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco (…) até ao conhecimento dos mais compostos. E o último, fazer sempre enumerações tão íntegras e revisões tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir.”
Afigura-se-nos sensata a posição de que a dúvida cartesiana não possui, no Discurso do Método, a dimensão metafísica que é vislumbrável noutros textos. De facto, no preâmbulo da quarta parte desta obra, o filósofo francês destaca três fatores que justificam a aplicação da dúvida metódica: 1) sabemos que as informações derivadas dos sentidos são enganadoras, pelo que nenhuma crença empírica deve ser tomada como verdadeira (este argumento é corroborado pelos céticos e coloca em causa a validade do conhecimento a posteriori). 2) no âmbito da lógica e da matemática, o ser humano comete paralogismos nos raciocínios mais simples. 3) certos sonhos não são discerníveis das perceções que temos no estado de vigília e, como tal, não existe qualquer certeza de que a própria vida não é um sonho.
Contudo, nas Meditações sobre a Filosofia Primeira, com a evocação do argumento do deceptor (deus enganador), a dúvida atinge a sua fase hiperbólica, passando a suspensão judicativa a aplicar-se a toda a realidade extrínseca ao pensamento; este momento traduz-se, pois, na suspensão total da ontologia do mundo. Porém, mesmo considerando a hipótese de um deus que o pudesse iludir constantemente acerca de tudo, Descartes intui com elevada clareza e distinção a sua existência enquanto “coisa pensante”. Em última instância a dúvida é aplicável a tudo, exceto a si própria; isto é, em termos epistemológicos é possível duvidar de todo e qualquer conteúdo pensável, todavia, não é possível duvidar da realidade formal da própria dúvida. Isto porque a dúvida representa uma unidade de pensamento, e o pensamento em ato é já uma forma de ser cuja realidade não pode ser questionada: penso, logo existo (cogito, ergo sum). É este, com efeito, o princípio fundacional que sustenta a validade do conhecimento e que permite, consequentemente, refutar o ceticismo radical.