observador.ptObservador - 8 ago. 00:08

Quo vadis, Alentejo? - A dicotomia entre a tradição e a escala

Quo vadis, Alentejo? - A dicotomia entre a tradição e a escala

A terra não fala, mas responde. E no Alentejo, essa resposta é cada vez mais audível.

No coração do Alentejo, ao longo dos seus horizontes largos, planícies infindáveis e sol ardente, trava-se uma revolução silenciosa, que opõe a extensiva arte da tradição à precisão tecnológica da modernidade. As mudanças no agronegócio transformam a paisagem, a economia e a identidade de uma das regiões mais simbólicas de Portugal. Mas a que custo cresce este novo modelo de gestão agrícola? Que contrastes, desafios e encruzilhadas são estes de um Alentejo que, cada vez mais, produz para fora… e segue interrogando o que ainda lhe pertence?

Nas últimas décadas, a região transformou-se num polo estratégico do agronegócio português e internacional, alicerçado em setores como o olival, o amendoal, a vinha, a cortiça e a produção animal. Não podemos ainda esquecer o crescimento notável do agroturismo, que vem atribuindo à paisagem um estatuto quase terapêutico, como se oferecesse alento às almas exaustas.

Contudo, esta evolução esconde contrastes profundos entre dois mundos que coexistem: Por um lado, o das grandes empresas agroindustriais, maioritariamente controladas por grupos económicos nacionais e estrangeiros; do outro, pequenas e médias explorações, muitas de natureza familiar.

As grandes empresas trouxeram consigo inovação, mecanização, acesso a mercados internacionais e capacidade de investimento em tecnologias que aumentam o rendimento produtivo. No olival e na vinha, por exemplo, a escala permite uma irrigação eficiente, certificações de qualidade, marketing sofisticado e ganhos de produtividade que colocam Portugal nos mapas de exportação.

Porém, esta lógica de eficiência contrasta com a resiliência dos pequenos produtores, que preservam práticas ancestrais, investem na identidade local e cuidam da biodiversidade como parte da sua herança. São estas empresas que frequentemente sustentam o tecido social, económico e ambiental das aldeias, vilas e pequenas cidades alentejanas, muitas vezes apelidadas de “terras esquecidas” pelas suas próprias comunidades. E são também estas que enfrentam os maiores obstáculos: acesso limitado a determinados serviços, pouca capacidade de investimento em inovação, e um sistema burocrático exaustivo, e que em nada favorece os pequenos produtores.

No plano social, a transformação do setor trouxe efeitos ambíguos. A concentração fundiária e a mecanização crescente têm vindo a esvaziar o território. Em apenas seis décadas, a região perdeu cerca de 40% da sua população, um dado que não deveria deixar ninguém indiferente. Hoje, os campos estão mais vazios, e esta preocupante tendência mantém-se, com a região a perder gradualmente os seus habitantes, sobretudo jovens, que procuram melhores oportunidades de vida, quer seja dentro ou fora do país. Enquanto isso, aumenta a dependência de mão-de-obra sazonal, essencial para sustentar a colheita de culturas intensivas, muitas vezes assegurada por imigrantes em condições precárias. Os empregos gerados são necessários, mas nem sempre traduzem inclusão social ou desenvolvimento humano sustentável.

Economicamente, o agronegócio é vital. Em 2024, segundo o INE, o Alentejo foi responsável por mais de 80% da produção nacional de azeite – graças, em grande parte, aos 66 mil hectares de olival intensivo, dos quais, cerca de 50 mil foram instalados na última década. A região representa ainda cerca de 17% da produção nacional de vinho. A cortiça mantém-se como um símbolo de excelência, com os montados de sobro e azinho a assegurarem não só produtos de valor, mas também serviços de ecossistema fundamentais. O agroturismo veio oferecer novas oportunidades, ligando o mundo rural ao turismo experiencial e sensorial. No entanto, a dependência de fundos europeus, a vulnerabilidade às alterações climáticas e a pressão sobre os recursos hídricos tornam o modelo atual instável – e, por vezes, insustentável.

A par dos impactos económicos e sociais, é impossível ignorar a fragilidade da governança territorial. A expansão intensiva das culturas agrícolas tem ocorrido muitas vezes à margem de uma visão estratégica concentrada, com políticas públicas pouco coerentes entre escalas local, regional e nacional. Falta planeamento a longo prazo, falta fiscalização eficaz e, sobretudo, falta uma escuta ativa das comunidades que vivem e trabalham na região. A ausência de um modelo de governança inclusivo, que integre decisores políticos, produtores, investigadores e sociedade civil, contribui para o aprofundar das desigualdades e para a erosão da coesão territorial.

Surge então uma pergunta inevitável: o agronegócio alentejano tem vindo a crescer, mas a que custo?  A expansão abrupta do olival e do amendoal em regime superintensivo tem levantado sérias questões sobre a saúde dos solos, o consumo de água e o futuro do aquífero alentejano, particularmente no perímetro do Alqueva. A monocultura em excesso empobrece os ecossistemas, acelera a erosão e compromete o equilíbrio.

Este debate não se resolve com romantismos nem simplificações. Não se trata de diabolizar as grandes empresas, nem de santificar os pequenos agricultores. Todos possuem um papel vital no contexto socioeconómico da região. Trata-se, isso sim, de perceber que o futuro do Alentejo poderá depender da criação de um modelo híbrido – onde a escala e a sustentabilidade, o lucro e a paisagem, e a inovação e a tradição se encontrem. Um modelo onde a cooperação entre diferentes atores, a regulação inteligente e o investimento responsável sejam os pilares de uma nova agricultura.

E assim questiono: Quo vadis, Alentejo? À medida que o território se enche de fileiras ordenadas de olival e amendoal, cresce também a interrogação sobre a nossa soberania alimentar. Que futuro estamos a semear quando o prato alentejano, outrora diverso e sazonal, depende cada vez mais de monoculturas destinadas à exportação? Entre a eficiência do presente, e a resiliência do futuro, o Alentejo vê-se diante de uma encruzilhada. A pergunta, agora, é coletiva: para onde queremos ir?

Afinal, o verdadeiro valor do agronegócio não se deve, ou não se deveria, medir apenas em euros por hectare, mas também em futuro por geração.

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