Paulo Cardoso de Almeida - 7 ago. 11:07
Para onde vão os jornalistas que escreviam como seres humanos?
Para onde vão os jornalistas que escreviam como seres humanos?
A 2 de agosto, o jornalismo brasileiro perdeu não apenas um nome, mas um estilo. José Roberto Guzzo - ou simplesmente J.R. Guzzo, como assinava com a elegância e ...
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Guzzo era uma daquelas pessoas que, ao entrar numa sala, fazia você pensar: “Ah, então é assim que fala um intelectual bem vestido.” Tinha voz de tenor, modos de diplomata europeu e o hábito irritantemente charmoso de chamar toda a gente de “doutor” — mesmo quem mal sabia soletrar “dissertação”. Era o tipo de pessoa que, ao dizer “bom dia”, parecia estar a lançar um editorial filosófico.
Foi ele que, juntamente com Roberto Civita, um dos arquitetos do império Veja, a revista que, nos bons (e barulhentos) tempos, vendia mais do que pão quente numa padaria de bairro, fez a tiragem semanal saltar de 140 mil para 1,2 milhão de exemplares semipornográficos (no sentido jornalístico, claro - publicando escândalos, revelações e capas explosivas). A Veja tornou-se um fenómeno notório, e a Editora Abril reinaria, durante décadas, como a Disney do jornalismo brasileiro - antes de descobrir que precisaria atualizar-se e olhar com carinho para a IA.
Guzzo também comandou a revista Exame, onde transformava economia numa leitura leve - ou, pelo menos, o mais leve possível quando se fala de PIB, juros e inflação. Tinha o dom raro de explicar o complicado com quatro palavras e um toque de ironia. Era como se o caos do mundo fosse um quebra-cabeças, e ele, com um copo de uísque na mão, dissesse: “Ah, isto? Basta colocar esta peça aqui.”
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Assine a nova newsletter do 24notícias aqui.Trabalhei com ele durante mais de 20 anos. Uma sorte tão grande que, se fosse um jogo de lotaria, já estaria reformado em Lisboa. Lembro-me de que, entusiasmado com um convite para ajudar a Edimpresa em Portugal, fui até à sua sala, todo animado, tipo aprendiz diante do mestre Jedi:
— Guzzo, o Camilo Lourenço chamou-me para ir para Lisboa, na empresa de Pinto Balsemão. Acho que vou aceitar.
Ele olhou-me, como quem já sabia o que eu ia dizer antes de eu abrir a boca, e soltou, com aquela voz de locutor de rádio culto:
— Vá. Vai gostar de lá. Se estiver mal, volte em um ano. Se estiver bom, em dois. Tem muito a fazer aqui.
Se tivesse gravado, punha este áudio em loop na Alexa em casa. Era um conselho com alma: generoso, sem apego, cheio de confiança. E, claro, ele tinha razão. Em Lisboa, fiz amigos que ainda hoje me atendem no WhatsApp. Quando regressei, porém, o Brasil já não era o mesmo. Nem o jornalismo. Nem a Abril. E Guzzo, embora ainda presente, não dirigia a divisão para a qual voltei. Ainda assim, tornámo-nos amigos mais próximos de almoço no restaurante Senzala, em São Paulo, com conversas longas e muito humor elegante.
Éramos vizinhos de praia no litoral norte de São Paulo. Guzzo fazia as suas caminhadas na areia acompanhado da mulher, que partiu antes dele, e parava quando nos encontrávamos. Mas logo voltava a acompanhar a mulher que passava na volta, soltando faíscas por ele ter parado.
É verdade: Guzzo era conservador. Muito. Apoiou Maluf (sim, aquele Paulo Maluf, o do dinheiro na Suíça - mais de 16 milhões de dólares foram repatriados das suas contas para os cofres públicos - só uma parte do desvio), defendeu Bolsonaro até ao fim e fundou a revista Oeste, que, se não fosse por alguns artigos inteligentes - que não leio, poderia facilmente ser confundida com uma faixa numa manifestação de direita. O seu último texto, escrito horas antes de sofrer um enfarte em casa, era um desabafo belicoso contra Lula, o STF, Alckmin e tudo o que não pensasse com olhar conservador. Neste ponto - e só neste - discordávamos. Embora eu nunca tenha apoiado Lula, jamais seria capaz de apoiar Bolsonaro - que me fez, com dor no coração, votar em Lula sem outra opção. Mas, mesmo quando estava errado, Guzzo era interessante. Não repetia clichés, escrevia-os com estilo único.
E é isso que mais dói. Não é apenas a perda de um grande jornalista. É a constatação de que pessoas assim estão a desaparecer. Hoje, muitos escrevem para confirmar o que o público já pensa. Guzzo escrevia para fazer pensar - mesmo que, no fim, continuássemos a discordar. Tinha opinião, sim, mas também tinha inteligência, humor e uma ética profissional que não se resumia a clicar em “publicar” depois de uma discussão no Twitter. E alto lá! Se não tivéssemos cuidado, ele convencia-nos, tamanha inteligência em seu discurso.
O conservadorismo brasileiro perdeu o seu melhor texto. O jornalismo, o seu último cavalheiro de fato e gravata que ainda usava “portanto” e “contudo” sem parecer um chatbot. Eu perdi um amigo. E o Brasil perdeu um pouco da sua capacidade de conversar - com elegância, com ironia, com ideias.
Resta-nos lembrar a sua voz, o seu “doutor”, o seu jeito de dizer “vá, mas volte” como se o mundo fosse um lugar onde ainda cabem generosidade e respeito.
É pena que, hoje, isso soe como ficção. Desperte em paz, Guzzo.
E obrigado por ter existido, doutor!
* Paulo Cardoso de Almeida é jornalista e designer brasileiro.