Observador - 8 ago. 00:07
Violência doméstica - sem defesa, não há justiça. Até quando vamos deixar as vítimas sozinhas?
Violência doméstica - sem defesa, não há justiça. Até quando vamos deixar as vítimas sozinhas?
A proposta para criar uma escala de atribuição automática de advogados para vítimas de violência doméstica foi aprovada, com todos os pareceres favoráveis. Caducou. Mas a urgência não caducou com ela.
Foi em 2022 que a Assembleia da República aprovou uma proposta crucial: garantir que vítimas de violência doméstica e outras pessoas em situação de especial vulnerabilidade tenham acesso automático e imediato a apoio jurídico, desde o momento em que denunciam o crime.
A proposta teve pareceres favoráveis da APAV, da Ordem dos Advogados, do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior do Ministério Público e da própria Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Estava tudo pronto. Mas com a dissolução do Parlamento, a proposta caducou.
Só que as vítimas não caducam. Continuam a apresentar queixa em contextos de fragilidade extrema. Muitas vezes, estão em choque, com medo, com filhos ao colo, a tentar sobreviver. São informadas dos seus direitos, mas não estão em condições de os assimilar. A dor, o trauma, a confusão não permitem que tomem decisões conscientes e juridicamente eficazes.
Neste cenário, o apoio jurídico não pode depender da iniciativa da vítima. Tem de ser garantido – com atribuição automática. O próprio GREVIO, nas suas recomendações a Portugal, sublinha a necessidade de eliminar obstáculos ao acesso à justiça e ao apoio, como a exigência de queixas formais para aceder a proteção, a ausência de formação obrigatória em violência de género e os mecanismos que perpetuam a revitimização durante o processo. Já o GRECO alerta para a falta de transparência e critérios claros na atuação e seleção de magistrados, realçando que a fragilidade institucional prejudica o acesso equitativo à justiça – especialmente por parte de pessoas em situação vulnerável.
Sem apoio desde o início, tudo pode falhar: a denúncia, a recolha de prova, a ativação de medidas de proteção, a articulação com saúde, habitação, proteção de menores. Enquanto os agressores, por regra, já contam com apoio jurídico atribuído automaticamente – seja por meios próprios ou via patrocínio oficioso -, o acesso da vítima continua a depender da sua iniciativa, num momento em que, muitas vezes, mal consegue verbalizar o que viveu.
A proposta caducada previa a criação de uma escala rotativa, devidamente remunerada, para a atribuição automática de advogados/as com formação especializada, disponíveis para acompanhar as vítimas nos momentos mais críticos: apresentação da queixa, primeiras declarações, perícias médico-legais, pedidos de proteção, articulação com serviços sociais.
Este apoio jurídico imediato – por via de atribuição automática – pode ser a diferença entre salvar uma vida ou não. A diferença entre haver justiça ou não.
Portugal comprometeu-se internacionalmente com a proteção das vítimas. Aprovou esta medida, reconheceu a sua importância, teve consenso técnico e político. Por que razão não é retomada com urgência?
Ou se enfrenta com coragem política este verdadeiro terrorismo que é a violência doméstica – ou assumimos, mais uma vez, que quem mais sofre continuará a ser quem menos conta. As vítimas esperam. Mas não deviam esperar sozinhas. Nem por uma justiça intermitente ou lusco-fusca.