observador.ptObservador - 9 ago. 00:05

Morte às mãos dos extremos

Morte às mãos dos extremos

O espaço vital da política e da arte é aquele onde há disputa sem destruição, conflito sem aniquilação, crítica sem apocalipse.

Há um fio invisível, mas inquebrantável, que liga a pulsão pelo absoluto à negação da vida. Onde se procura a pureza total, onde se reclama a perfeição sem mácula, aí já não se quer reformar o mundo: quer-se, secretamente, extingui-lo. Assim, tanto na política como na arte, o apelo aos extremos não é apenas uma desordem do juízo, mas uma forma velada de desprezo pela condição humana, essa condição de mistura, de imperfeição e de limite. Com efeito, a vida, enquanto manifestação orgânica e social, é feita de compromisso, de variação, de gradações infinitas. A vitalidade reside precisamente na tensão entre contrários, na mediação de opostos, na fecunda imperfeição do inacabado. Ora, o extremismo, em qualquer das suas expressões, repudia essa ambivalência fundadora: quer uma ordem sem fissuras, uma verdade sem sombra, uma comunidade sem conflito. E ao fazê-lo, suprime aquilo mesmo que torna a existência possível.

O extremista, seja ele o fanático político, o vanguardista estético ou o moralista absoluto, recusa o drama da vida real. Não aceita a lentidão do crescimento, a ambiguidade dos afetos, a fragilidade das instituições. Anseia pela rutura total, pela tábua rasa, pela catástrofe regeneradora. Mas esse anseio, que se apresenta como um apelo à pureza ou à justiça integral, é, em última análise, um desejo de morte: morte da sociedade tal como é, morte da história que pesa, morte do outro que resiste a ser convertido ou destruído. Há, pois, no extremismo, não uma vitalidade exacerbada, mas uma exasperação da impaciência que só a morte pode saciar. Onde a moderação é a arte difícil de equilibrar forças contrárias, o extremismo é o apelo fácil à aniquilação de uma das partes. Onde o político prudente reconhece que toda a ordem é imperfeita e provisória, o extremista clama por um reino final onde toda a dissonância tenha sido suprimida: a custo da própria liberdade, da pluralidade, da vida.

A história é pródiga em exemplos de como esta paixão pelo absoluto se consuma em tragédia. Os projetos que mais ardentemente juraram instaurar o paraíso na Terra terminaram, invariavelmente, por semear o inferno. Revoluções que prometiam emancipação degeneraram em tiranias; movimentos que clamavam pela pureza degeneraram em expurgos e massacres. O extremismo, que começa como negação do presente, termina sempre como negação do humano. Não é apenas na política que este ímpeto se manifesta. Também na arte se vê a ânsia de ir até ao fim, de dissolver toda a forma, de ultrapassar toda a tradição, de negar toda a herança. O culto da rutura permanente, da provocação sem termo, revela a mesma pulsão nihilista: não uma paixão pela criação, mas um ódio secreto à própria possibilidade da criação, que sempre supõe limites, regras, continuidade.

Importa, pois, resistir ao canto de sereia dos extremos. Não porque se deva idolatrar o centro, entendido como uma mediania sem princípio, mas porque o espaço vital da política e da arte é aquele onde há disputa sem destruição, conflito sem aniquilação, crítica sem apocalipse. A verdadeira coragem política não consiste em clamar pela destruição de tudo o que existe, mas em suportar o fardo de reformar o imperfeito sem ceder à tentação de o reduzir a cinzas. Viver é aceitar o inacabado, o impuro, o transitório. Construir uma cidade humana é consentir em viver no intervalo entre o que é e o que poderia ser, sem jamais tentar abolir essa distância à força. Todo aquele que, por impaciência ou desespero, procura apagar essa tensão, procura busca, no fundo, uma vida mais alta, mas sim o alívio insidioso da morte.

Por isso, em tempos de febre ideológica e fervor sectário, mais urgente do que nunca é recordar que a política, como a arte, existe para sustentar a vida, não para a ultrapassar. Que a liberdade não é o prémio de uma pureza alcançada, mas o risco constante de um equilíbrio imperfeito. Que a vitalidade das sociedades reside não no triunfo de uma parte, mas na capacidade de coexistência entre forças inconciliáveis. A paixão pelos extremos é, enfim, a mais bela máscara da nossa vergonha de viver: querer o impossível porque não se suporta o possível. E nada é mais mortal do que isso.

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