observador.ptObservador - 9 ago. 00:03

Ferrovia, o regresso do futuro

Ferrovia, o regresso do futuro

Falar de ferrovia em Portugal é falar de soberania, sustentabilidade e solidariedade territorial.

A contratualização da concessão do troço inicial da linha de alta velocidade entre o Porto e Oiã foi anunciada e representa a concretização da ligação Lisboa-Porto em 1 hora e 15 minutos, através de um investimento de 1661 milhões de euros e da construção de uma das infraestruturas mais ambiciosas do nosso país. Este projeto, em conjunto com um plano de capacitação dos portos portugueses, no valor de 4000 milhões de investimento via PPP, que incluirá 15 concessões e a criação de novos terminais de contentores em Leixões, Setúbal, Aveiro e Sines, marca um momento de viragem na mobilidade nacional.

Surge assim uma aposta numa rede logística moderna e interligada pela ferrovia. Dois anos após a publicação nesta mesma plataforma digital do meu artigo de opinião Ferrovia, precisa-se, questiona-se: estará Portugal finalmente a dar passos concretos para enfrentar o défice histórico de investimento ferroviário e, através deste investimento, reequilibrar o país através de infraestruturas que promovam a coesão, a eficiência e a sustentabilidade?

Vivemos num país marcado por assimetrias territoriais, dependência energética e vulnerabilidades logísticas, tornando a ferrovia numa resposta estrutural a desafios históricos, presentes e futuros. Por esse motivo, depois de décadas de desinvestimento e hesitação política, perante as medidas anunciadas, regressar a este tema não é repetir o mesmo discurso: é aprofundá-lo, ligando o passado ao que ainda pode ser feito. Escrever um segundo artigo sobre esta temática é, por isso, insistir na importância de não deixar o debate sair de linha.

Durante a passagem entre o fim do século XIX e o início do século XX, a ferrovia teve o seu apogeu em Portugal. O seu início ocorreu no ano de 1851 e, até ao final do século, os principais eixos de caminhos de ferro já tinham sido assentes. Este investimento resultou de uma visão unificadora e progressista do país. As classes política e técnica procuravam retirar Portugal, até então assolado por conflitos, da periferia europeia: Uma Regeneração. O Estado, apesar do investimento ter sido liderado por privados, através de companhias, desenhou através da ferrovia um mapa de um novo País.

Atualmente, para que a ferrovia em Portugal volte a desempenhar o papel estratégico que já teve, é necessário ultrapassar décadas de desarticulação e fragmentação que sucederam desde então. As linhas existentes carecem de modernização e eletrificação: a velocidade média dos comboios de mercadorias é baixa, apesar de ser nas mercadorias que o setor tem maior relevância e resultados positivos do ponto de vista financeiro; os tempos de viagem em passageiros pouco competitivos face à rodovia e sobretudo a integração com outros modos de transporte, como os portos e os centros logísticos, permanece insuficiente.

Estes obstáculos não são apenas técnicos, são sobretudo, um reflexo de opções políticas e orçamentais que relegaram o transporte ferroviário para um papel secundário. Importa, por isso, colocar a ferrovia no centro de uma nova visão para o país, alicerçada em investimentos sustentáveis, planeamento integrado e seguindo uma ambição estratégica.

O Plano Ferroviário Nacional (PFN), se for devidamente concretizado, permitirá redesenhar a mobilidade nacional, fomentar coesão regional, reduzir a pegada carbónica e criar valor económico. Mas para que tal aconteça, o PFN não pode ser apenas um documento orientador: tem de se traduzir em obra feita, prazos cumpridos e resultados tangíveis para todos os cidadãos.

Nesse sentido, Miguel Pinto Luz, ministro das Infraestruturas, afirmou: “Temos de facto de terminar a Ferrovia 2020 e começar a cumprir prazos”.

E, para isso, será necessário um compromisso político em torno de um planeamento estratégico duradouro, que ultrapasse ciclos governativos e partidarismos, e que envolva os vários níveis da administração, desde o Estado central às autarquias locais. Além disso, o desafio é também cultural: revalorizar a ferrovia exige mudar mentalidades, combater o estigma da sua lentidão e greves, e mostrar que o comboio é não só viável, como desejável — moderno, eficiente e sustentável.

Tal como referido no meu artigo anterior, onde destaquei a ligação Lisboa-Badajoz, as ligações fronteiriças e a alta velocidade são fundamentais para a erradicação da ilha ferroviária portuguesa, e o seu consequente isolamento. Nesse sentido, foi anunciado recentemente o estudo da viabilidade de vários projetos, incluindo o da linha de alta velocidade de Trás os Montes. No âmbito de transporte de mercadorias, o foco deve ser estabelecer ligações não apenas à Península Ibérica central, mas também aos portos espanhóis.

No entanto, serão igualmente ou até mais importantes projetos de âmbito regional como a reabertura e modernização da ligação da Linha da Beira Alta e Beira Baixa ou as obras de modernização da linha do Oeste. Outro exemplo paradigmático é o da Linha do Douro, uma das mais emblemáticas do país, com um imenso potencial turístico, cultural e económico. A reabilitação e capacitação desta linha não é apenas uma questão de património ou herança histórica, é uma oportunidade concreta de dinamizar o interior, atrair investimento e valorizar uma região através do turismo.

Os projetos de âmbito urbano não podem também cair em esquecimento, uma vez que permitem libertar os residentes de cidades com elevada densidade populacional do ruído e poluição atmosférica. Segundo dados de 2023, Lisboa ocupa a 24ª posição no ranking das cidades mais congestionadas a nível global. E, segundo um inquérito de 2022, 60% dos passageiros estão insatisfeitos com o sistema de transportes públicos. A ferrovia é, deste modo, necessária para o desenho de políticas de regeneração urbana e uso dos solos.

Para ser um instrumento eficaz na implementação das políticas supracitadas é necessário garantir uma operação ferroviária eficiente e gerida de forma transparente. Para isso, é imprescindível apostar em material circulante moderno, aumentar a frequência de serviços, melhorar os horários e reforçar a ligação com redes de transporte local – sobretudo nas zonas suburbanas onde o descontentamento da população é cada vez mais evidente, como foi demonstrado pela situação descrita em Lisboa. A ferrovia tem de ser pensada como parte de um ecossistema de mobilidade que privilegia o transporte público e a intermodalidade face ao automóvel na cidade.

Dentro e fora da cidade, os benefícios ambientais da ferrovia são inegáveis. Com emissões de CO₂ significativamente inferiores às do transporte rodoviário e aéreo, o caminho-de-ferro é uma ferramenta na luta contra as alterações climáticas. A sua eletrificação e o uso crescente de energia renovável tornam-no um aliado natural na descarbonização do setor dos transportes. E, num contexto de crescente pressão sobre recursos energéticos e de metas ambientais cada vez mais exigentes, ignorar este potencial seria insensato.

A ferrovia pode também desempenhar um papel regenerador no combate à desertificação humana no interior. A melhoria da conectividade entre centros urbanos, suburbanas e zonas rurais pode fomentar a fixação de população, atrair novos residentes e permitir o desenvolvimento de novas formas de trabalho. A ferrovia é, portanto, não apenas um vetor de mobilidade, mas uma alavanca para políticas de coesão territorial e desenvolvimento regional.

Portugal tem, neste campo, uma vantagem comparativa a muitos dos países europeus: a sua geografia e dimensão do território, que permitem que o comboio possa ser verdadeiramente competitivo em curtas e médias distâncias. Esta vantagem geográfica deve ser aproveitada com inteligência e visão estratégica. As diretrizes de Bruxelas, os fundos europeus e as decisões tomadas pelos nossos vizinhos espanhóis são importantes, mas não podem substituir uma estratégia nacional independente e duradoura.

É necessário, contudo, para alcançar os resultados desejados por todos nós, um esforço de planeamento rigoroso, que envolva técnicos especializados, di��logo com as comunidades locais e avaliação de impacto ambiental. Cada quilómetro de linha deve responder às necessidades reais das populações e gerar valor acrescentado a longo prazo.

Em suma, falar de ferrovia em Portugal é falar de soberania, sustentabilidade e solidariedade territorial. É reconhecer que um país mais coeso, moderno e resiliente passa por linhas de comboio, por estações renovadas e caminhos que nos voltam a ligar uns aos outros e, finalmente, à Europa. É, sobretudo, acreditar que há um futuro a erguer sobre os alicerces de uma rede que nunca deveria ter sido deixada para trás.

Reencontrar a ferrovia é, afinal, reencontrar o nosso rumo e pensar num novo futuro que chegará.

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