observador.ptObservador - 9 ago. 00:08

O ofício de boiar

O ofício de boiar

O surfista que ocupa o governo, sobretudo se a sua prancha for de uma maioria precária, não pensa na rota; toda a sua energia se consome no esforço de não se afogar. E a oposição está na mesma praia.

Há dois tipos de homens no mar: o capitão, que lê as cartas de navegação para demandar um porto, e o surfista, que apenas lê a onda para não se afogar. Os nossos políticos, como se sabe, já não são capitães; são surfistas. A sua bússola não é a convicção, mas o algoritmo; o seu ofício não é o de traçar a rota, mas o de calcular se a parede de água da última sondagem, que se ergue ameaçadora, exige um cutback rápido para a sua base eleitoral ou um mero trimming de comunicação. Esta submissão à rebentação incessante da opinião pública não é uma estratégia; é a patologia terminal que afogou a coragem e condenou o navio do Estado a ser arrastado, sem leme e sem rumo, pelas correntes invisíveis que nenhuma sondagem sonda.

O surfista que ocupa o governo, sobretudo se a sua prancha for a de uma maioria precária, não tem o luxo de pensar na rota; toda a sua energia se consome no esforço diário de não se afogar. E a oposição, que se deveria esperar no estaleiro a construir um navio mais robusto, está na mesma praia, com a sua própria prancha, não a traçar uma nova rota, mas a rezar por uma onda traiçoeira que derrube o seu rival. Em terra, o circo auto-sustenta-se: uma comunicação social que, tendo trocado a análise das cartas náuticas pelo comentário desportivo, passa agora os dias a discutir em câmara lenta a elegância de uma manobra ou a marca da prancha, ignorando a maré que sobe e já lhes molha os pés; e, na areia, uma multidão de passageiros que, tendo renunciado a chegar a qualquer porto, se tornaram meros espectadores de um desporto aquático, aplaudindo a pirueta mais vistosa e vaiando o capitão que, rouco de tanto gritar, ainda lhes tenta apontar os icebergues no horizonte.

O verdadeiro drama, porém, não se joga na superfície soalheira, onde se compete pela espuma das ondas. Joga-se no porão escuro e esquecido do navio do Estado, onde já se ouve o gotejar constante da realidade nas sentinas. Não são rombos estáticos; são forças vivas a corroer o casco: a demografia, que, como uma infiltração lenta e implacável, vai submergindo os alicerces da Segurança Social e da Saúde; a produtividade, esse lastro podre que puxa a quilha da economia para o lodo; e a justiça, essa ferrugem que vai, dia após dia, comendo as engrenagens do leme, tornando o navio ingovernável. A reparação exige o trabalho sujo de um engenheiro naval. E assim, enquanto na superfície se celebra a pirueta do dia, o navio, já adernando visivelmente sob o seu próprio peso, inicia a sua descida final e silenciosa para o abismo.

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