observador.ptObservador - 9 ago. 00:17

A minha moral é superior à tua (4)

A minha moral é superior à tua (4)

A afirmação da superioridade moral. Da tradição conservadora ao domínio evangélico e da extrema-direita.

O Partido Republicano (GOP – Grand Old Party) passou por uma metamorfose que o transformou de bastião do conservadorismo económico num movimento cultural radicalizado. O que outrora foi um partido de elites económicas e conservadoras, uma força política tradicional, com raízes na defesa do livre mercado e na contenção fiscal, tornou-se gradualmente um movimento cultural radicalizado, onde religião, ressentimento e populismo se cruzam de forma explosiva definindo as prioridades políticas. Esta evolução – ou mutação – começou com Richard Nixon e consolidou-se com Donald Trump, envolvendo uma aliança explosiva entre os evangélicos, a extrema-direita e agora também com tecnocratas como Peter Thiel.

1. Nixon e o Conservadorismo Estratégico

O ponto de inflexão começou com a chamada “Estratégia do Sul” de Richard Nixon, no início dos anos 1970. Ao procurar conquistar eleitores brancos sulistas descontentes com Martin Luther King, Jr., e os avanços dos direitos civis, Nixon mobilizou uma retórica de “lei e ordem” que apelava a uma classe média assustada, ansiosa por estabilidade. Embora mantivesse distância dos evangélicos – ainda maioritariamente apolíticos – e da extrema-direita organizada, mas marginalizada (John Birch Society), foi com Nixon que se iniciou a ponte entre o conservadorismo cultural e a política partidária, reforçando o papel da identidade, incluindo religiosa, na agenda republicana.

2. A Mobilização Religiosa

A direita religiosa encontrou um catalisador na decisão Roe v. Wade (1973), que permitiu o aborto nos EUA. O Pastor Jerry Falwell e a sua “Maioria Moral” transformaram a moral religiosa num poderoso instrumento eleitoral. Os evangélicos deixaram de ser espectadores e tornaram-se protagonistas, exigindo uma plataforma política que combatesse não apenas o aborto, mas também a secularização da sociedade americana. E o GOP começou a absorver esse eleitorado. Adaptando-se às suas exigências, adoptou a agenda religiosa e moldou a sua narrativa em torno da chamada “guerra cultural”. Ao mesmo tempo, a extrema-direita reorganizou-se em torno de causas como a oposição aos impostos, à imigração e ao intervencionismo externo, desafiando o establishment moderado do partido.

3. Reagan e a Consolidação Ideológica

Ronald Reagan não foi apenas um presidente carismático – foi o verdadeiro fundador do Partido Republicano moderno. Com ele, os evangélicos passaram de aliados a protagonistas. Reagan prometeu defender valores tradicionais, combater o aborto e restaurar a presença da religião na esfera pública. Apesar do seu pragmatismo em várias decisões, conseguiu unir evangélicos, conservadores económicos e anticomunistas numa coligação ideológica duradoura, deslocando o partido definitivamente para a direita. Embora não fosse um religioso fervoroso, Reagan prometeu restaurar a influência da fé cristã na esfera pública e nomeou juízes alinhados com a agenda religiosa. O seu legado é visível ainda hoje na estrutura ideológica do GOP, sobretudo no modo como a política é travada em torno de valores morais, e não apenas de princípios económicos.

4. O Recuo dos Moderados

A presidência de George H. W. Bush revelou o início do declínio do centro moderado republicano com os evangélicos a representar cerca de 40% dos eleitores nas primárias do GOP. Apesar de herdar a coligação de Reagan, Bush Sr. não conseguiu manter a fidelidade da base evangélica e nacionalista. O aumento de impostos, a procura do bipartidarismo, combinados com uma postura centrista nas relações internacionais, gerou tensões internas. O desafio de Pat Buchanan nas primárias de 1992 e o extremismo de Newt Gingrich e do seu “Contrato com a América” consolidaram a ascensão da extrema-direita fiscal e do sentimento antigovernamental, lançando as sementes do futuro movimento Tea Party.

5. Obama e o Despertar do Populismo

A eleição de Barack Obama, em 2008, foi um catalisador poderoso da radicalização republicana. Para muitos sectores conservadores, Obama personificava tudo o que o GOP rejeitava: multiculturalismo, progressismo e intervenção estatal. Os evangélicos mantiveram a sua influência, mas foi a extrema-direita que mais cresceu. O Tea Party, nascido da hostilidade a Obama, à reforma da saúde e à crescente diversidade do país, consolidou um discurso populista, fiscalmente conservador e socialmente reacionário. Figuras como Ted Cruz e Rand Paul combinaram religião, libertarianismo e nacionalismo num discurso político inflamável. Infelizmente, essa retórica desfigurou o GOP que passou a ser beligerante e intransigente.

6. Trump e a Reconfiguração Final

Donald Trump representou a fusão definitiva entre superioridade moral da fé e o fanatismo. Divorciado e sem tradição religiosa, a “anomalia” Trump converteu-se num ícone para os cristãos conservadores, estabelecendo um alinhamento quase incondicional ao prometer defender a “liberdade religiosa”, nomear juízes antiaborto e atacar ferozmente o politicamente correcto e o wokismo. A extrema-direita encontrou nele o seu paladino: nativismo, protecionismo, teorias da conspiração e desprezo pelas instituições democráticas tornaram-se norma. O ataque ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, foi a tradução prática dessa radicalização.

7. Captura Tecnocrática

Peter Thiel, alguém que diz ser libertário e que já não acredita que a liberdade e a democracia são compatíveis, tem tido um papel fundamental na reconfiguração ideológica do GOP. Ao longo dos anos, Thiel tornou-se numa infraestrutura de poder que molda discretamente decisões estratégicas no seio do GOP (convém não descurar o papel da Palantir Technologies no Estado norte-americano). Considerando que a democracia liberal é um obstáculo à eficiência do poder, Thiel, através de think tanks, plataformas alternativas e publicações, promove uma agenda que desafia os pilares da democracia e é um dos principais promotores da chamada “Nova Direita”. Ao apoiar candidatos como J.D. Vance e Blake Masters, ao difundir uma visão política que mistura libertarianismo tecnológico, nacionalismo autoritário e cepticismo democrático, Thiel não é apenas um mero financiador. É um ideólogo que procura definir futuros através de narrativas.

Simultaneamente, o Project 2025, da Heritage Foundation, apresentou um plano para reformular por completo o aparelho estatal, propondo abertamente a substituição funcionários públicos por nomeações de pessoas leais, o desmantelar agências federais, a criminalização do aborto e a promoção de uma visão religiosa no governo. Trata-se de uma engenharia institucional, que pretende tornar irreversível a transformação iniciada por Trump. Por outras palavras, é um manual para a captura política, administrativa e cultural dos EUA que põe em causa a secularização e democracia na América (ao menos, são claros e transparentes sobre o que pretendem).

8. GOP ou MAGA?

Em 2025, já não se pode falar de Partido Republicano nos moldes históricos. Os princípios fundadores do GOP – como o respeito pela Constituição, o equilíbrio fiscal, o federalismo e a contenção do poder executivo – foram substituídos por uma lógica de culto à personalidade e confronto permanente. O movimento MAGA, liderado por Trump, absorveu o partido, redefinindo-o como uma plataforma de vingança cultural, autoritarismo populista e superioridade moral religiosa.

Esta substituição não é apenas simbólica – é estrutural. A MAGA tornou-se a nova identidade política da direita americana, com Trump como figura de culto. A fidelidade é hoje critério de sobrevivência política dentro do partido. Não sei se a MAGA terá futuro. Nem JD Vance, nem Kari Lake, têm carisma suficiente para substituir Trump. Independentemente disso, neste momento, o GOP não existe. O que existe agora é o MAGA, algo completamente distinto, até mesmo contraditório aos princípios e valores que foram defendidos pelo partido republicano.

Após décadas de cedência ao fanatismo, o GOP é um partido dominado por guerras culturais e religiosas, ressentimento identitário e populismo autoritário. Moderados como John McCain ou Mitt Romney foram esquecidos ou marginalizados. Até o anticomunismo de Reagan foi praticamente descartado. E as redes sociais amplificam vozes radicais que incitam à exclusão, à confrontação e à perseguição de dissidentes. O partido, outrora defensor de valores democráticos, tornou-se adversário desses mesmos princípios.

O GOP não está apenas radicalizado – está profundamente reconfigurado. O cruzamento entre religião organizada, tecnologia autoritária e engenharia institucional tornou-o num partido que desafia os fundamentos da democracia liberal. Esta transformação, embora gradual, foi cuidadosamente alimentada e dificilmente será revertida. Mas não é impossível consegui-lo.

Post-Scriptum:

Eu leio e ouço o que dizem Peter Thiel e outros e recordo-me de Mussolini: “We were the first to state, in the face of demoliberal individualism, that the individual exists only in so far as he is within the State and subjected to the requirements of the State and that, as civilisation assumes aspects which grow more and more complicated, individual freedom becomes more and more restricted.” – To the General Staff Conference of Fascism, in Discorsi del 1929, Milano, Alpes, 1930, p. 280).

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