observador.ptObservador - 9 ago. 00:14

Plínio e a luz do desejo

Plínio e a luz do desejo

Röntgen recebeu o Nobel em 1900. Doou o dinheiro à Universidade, reservando-se o direito de baptizar a sua descoberta, porque todos a chamavam Röntgenstrahlen (o raio de Röntgen). Chamou-lhes Raios X.

Um irado professor repreende uma turma da Escola Técnica de Utrecht, exigindo o nome de quem desenhara a sua caricatura. O bode expiatório acabou por ser Wilhelm Röntgen, que foi imediatamente expulso.

Justo? Ele sempre negou ser o autor do desenho. A reivindicação de inocência não foi, contudo, suficiente e viu-se forçado a prosseguir estudos na Escola Politécnica Federal de Zurique. A mudança revelou-se decisiva porque foi aí que conheceu August Kundt, um professor que nele despertou a paixão pelo estudo da luz.

Uma tarde, Röntgen – que tinha vinte e um anos e era assistente daquele professor de Física – parou no bar Zum Grünen Glas para tomar café, sem saber que aí encontraria a mulher que lhe arrebataria o coração. Anna Ludwig, vinte e sete anos, era alta, morena, e de feições perfeitas. Servia no café do pai, razão pela qual tantos estudantes ali acorriam. Após três anos de consumo de café, Wilhelm foi pedir a mão da sua amada e ofereceu-lhe um anel de noivado, apesar da oposição de Friederich Röntgen, que pretendia que o filho procurasse uma mulher da mesma posição e que não fosse mais velha do que ele. Tratou de vergar a vontade de Wilhelm suspendendo-lhe a mesada. Duro golpe para o noivo, acostumado a viver com certa folga, mas ele não desistiu do amor. Acabaram por casar apenas em 1872, seis anos depois de se conhecerem e três após o noivado.

Conta-nos Plínio na sua História Natural, XXX: uma jovem segura uma chama na mão esquerda. Na direita, um pedaço de carvão. Diante dela está o jovem que ama. Mas a filha de Butades não olha para o seu amado, no momento em que este parte para a batalha; debruça-se sobre a cabeça dele para desenhar a linha que a sombra do cabelo traça na parede. A filha de Butades é afligida por desiderium.

Talvez nos convenha um segundo texto para compreendermos o mito a que Plínio se refere. É em Tusculanae Quaestiones IV, que Cícero define o desejo: Desiderium est libido videndi eius qui non adsit (desejo é a libido de ver alguém que não está). A desideratio é percebida como a alegria de ver, apesar da sua ausência, a pessoa ausente. A palavra desiderium pode ser traduzida pelas palavras recordação ou pesar. E também, claro, pela palavra desejo a que deu origem. Se a decompusermos, no de-siderium, na estrela ausente, esconde-se um regresso daquilo que foi perdido e que volta a mostrar-se apesar da sua perda.

O amor procura algo que não está ali. A jovem “parece ausente” para aquele que ama, mesmo que esteja diante dela. Só que, enquanto ele está diante dos seus olhos, ela antecipa a sua partida; imagina a sua morte; mesmo na sua presença, sente a sua falta: deseja o homem que está ali.

Desvendemos, por trás de desideratio, uma outra palavra latina: consideratio – em latim, consistia em descobrir como as estrelas se juntam para formar uma constelação no céu noturno. Como, dependendo das estações do ano, se arrumam e a sua influência, em datas fixas, se abate sobre homens, animais, plantas, sobre o caudal do rio, sobre o nível do lago ou sobre as marés. Em latim, as estrelas chamam-se sidera. As sidera trazem as estações do ano; assombram, pois governam o seu aparecimento e desaparecimento. Assinalam a ascensão e o ocaso dos seres. A sua ausência (de-sideratio) era lamentada de acordo com a época do mês ou a estação do ano. A palavra portuguesa desejo recebe o alívio desta desideratio (o pesar de uma ausência no céu nocturno). Pois as estrelas regressam ao seu esconderijo com o salmão à origem.

Consideremos, pois, a misteriosa cena da filha do oleiro que se esquece de um homem e contempla uma sombra: a jovem não segura o amante nos braços. Com a mão direita, segura uma brasa apagada. Com a mão esquerda, na escuridão da noite, move uma lamparina de azeite. De repente, levanta a chama acima dos olhos, de modo que esta projete a sombra do que vê por trás daquilo que vê. Não acaricia a sombra nem pressiona o volume do seu corpo contra ela.

Com o carvão, delineia cuidadosamente o contorno daquela repercussão obscura na superfície da parede. Não o frui; não aproveita a sua presença; já não está com ele sequer; olha-o distraidamente; sente-lhe a falta; deseja aquele homem; sonha com ele.

A jovem grega agarra-se à orla da sombra de um homem que se prepara para partir. O homem partiu. Morreu – e os comentadores de Plínio acrescentam que o jovem, lançando-se contra as fileiras inimigas, morreu tão gloriosamente que o seu nome foi louvado pela cidade no final da campanha. Encomendaram uma estela a um oleiro.

O oleiro era Butades. O pai da jovem. É ele quem recria a silhueta que a filha desenhou na parede com um pedaço de carvão, que transforma o “contorno de sombra” em “relevo de terra” imediatamente cozido ao forno. E como é que o pai acende o forno? Acendendo o pedaço de carvão que a filha segurava na mão na noite da sua partida.

Röntgen foi nomeado reitor da Universidade de Würzburg em 1894, mas continuou a dedicar-se à investigação com o mesmo entusiasmo de sempre. A 8 de novembro de 1895, na escuridão do seu laboratório, descobriu que os raios catódicos com que trabalhava pareciam atravessar certos objetos. Começou a experimentá-los em diferentes condições e a maior surpresa aconteceu quando passou a mão por eles: conseguiu ver os seus ossos.

Consciente da importância do que descobrira, pensou numa forma de fotografá-lo. A 22 de dezembro, tirou a primeira radiografia da história: uma mão, a mão de Anna que ele pedira em casamento em 1869. E, nessa película sensível à luz, surge, negro, como desenhado a carvão, o anel de noivado que lhe oferecera.

Röntgen recebeu o Nobel em 1900. Doou o dinheiro à Universidade, reservando-se o direito de baptizar a sua descoberta, porque todos a chamavam Röntgenstrahlen (o raio de Röntgen) e ele preferia outro nome. Por serem desconhecidos, chamou-lhes Raios X.

O amor não ama simplesmente o ausente – ilumina-o e redime-o.

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