Observador - 9 ago. 00:12
A Alheira e a Ditadura do Forno
A Alheira e a Ditadura do Forno
(Escrito por alguém que gosta do seu colesterol no ponto)
Há um fenómeno moderno que me preocupa mais do que o aquecimento global, o aumento do preço da gasolina ou a existência de pessoas que acham que a Terra é plana: a mania de cozinhar tudo no forno. É uma espécie de conspiração silenciosa, promovida por gente que, no fundo, quer ver o mundo arder, ou melhor, quer vê-lo a assar.
Fui recentemente a um restaurante e pedi uma alheira, esse tesouro nacional, herança histórica, salva-vidas dos cristãos-novos e património de colesterol da Humanidade. Na minha imaginação já estava o som da fritadeira, o óleo a borbulhar como um aplauso entusiástico à gula, e aquele aroma que nos entra pelas narinas e nos diz: — Vais morrer mais cedo, mas feliz.
Mas o empregado, com um ar triunfante que só se vê em anúncios de margarina, diz-me:
— A nossa alheira é feita no forno!
No forno. No forno. Aquela frase caiu-me como um balde de água fria… no óleo quente. É como irmos ao circo e descobrirmos que o palhaço está a fazer jejum intermitente. Ou como pedir um pastel de nata e receber uma fotografia do mesmo, para não engordar.
Eu sei o que eles querem. Querem obrigar-me a ser saudável. É uma espécie de imposição moral disfarçada de cortesia culinária. Porque agora vivemos numa época em que, se não comeres quinoa e couve kale és praticamente cúmplice de crimes contra a Humanidade. As mesmas pessoas que me dizem “coma no forno, é melhor para si” são as que, daqui a uns anos, vão defender que devíamos beber vinho sem álcool e café descafeinado. Que é como dizer: vamos manter o corpo da festa, mas expulsar a alma.
E reparem: fritar é uma tradição. É cultura. É química. É um milagre da física aplicada ao gosto de bem cozinhar e comer. A fritura pega numa batata sem graça e transforma-a em algo digno de ser disputado à facada. No forno, a batata fica murcha, pálida, como se tivesse saído de férias para um país nórdico e não tivesse apanhado sol.
Mas o pior não é isso. O pior é que o forno é passivo-agressivo. O forno demora. O forno quer conversar sobre a tua vida, enquanto a fritadeira vai direta ao assunto: plof, shhhh, está feito. É como a diferença entre mandar uma mensagem de “vamos?” e logo receber um “estou aqui à porta” versus enviar uma carta registada a marcar um encontro para daqui a três semanas.
E depois há esta ideia moderna de que tudo o que sabe bem faz mal. É verdade. Mas também é verdade que tudo o que faz mal sabe bem. É um equilíbrio universal. Tirar-nos a fritura é como querer viver para sempre mas proibirem-nos de sorrir; no fundo, qual é o sentido?
Ainda me lembro do tempo em que as avós fritavam rissóis, pataniscas, sonhos de abóbora… e nós sobrevivemos. Bem, alguns sobreviveram. Mas pelo menos ninguém tinha de fingir que comer era uma maratona de bem-estar. Hoje, o cozinheiro olha para mim e, com ar de guru espiritual, serve-me uma alheira assada e diz: — Vai ver que está deliciosa! Não estava. Ficou seca que nem um deserto. É como se alguém tivesse tirado à alheira a sua própria dignidade e a tivesse deixado num SPA de vento quente durante três horas.
O que eu quero, senhores, é fritura. Quero gordura a escorrer pelo prato. Quero aquele brilho da gordura e da unção que me diz: “Isto é perigoso, mas vale a pena”. Quero poder morrer de ataque cardíaco, feliz, depois de uma vida inteira a dizer “mais uma rabanada, se faz favor”.
Portanto, fica aqui o meu apelo: — Deixem-nos fritar em paz. Parem de nos salvar contra a nossa vontade. A liberdade também se mede na quantidade de óleo ou azeite que podemos ingerir sem sermos julgados. E, se algum dia esta cruzada anti fritura vencer, não se esqueçam que eu estarei lá, na clandestinidade, com uma frigideira, um litro de óleo e um sorriso nos lábios, a lutar pela pátria, uma alheira de cada vez.