observador.ptobservador.pt - 9 ago. 11:04

A civilização ocidental e um ambicioso plano de regressão: freios e contrapesos

A civilização ocidental e um ambicioso plano de regressão: freios e contrapesos

Donald Trump, que crê ter sido eleito para reinar como um monarca absolutista, está empenhado em eliminar o sistema de freios e contrapesos criado ao longo de muitos anos de experiência democrática.

[Este é o décimo de 13 artigos sobre a civilização ocidental, abordando, entre outros aspectos, a sua génese, a imagem que tem de si mesma e do seu papel na história, a forma como o resto do mundo a vê e o momento de crise que actualmente atravessa. Os artigos anteriores podem ser lidos aqui:]

Ditador (só) no Dia Um

Durante a longa campanha eleitoral de Donald Trump para as eleições de 2024, que pode ser vista como tendo começado com o anúncio formal da sua candidatura, a 22.11.2022, mas que remonta à derrota (nunca admitida) nas eleições de 2020, o candidato sugeriu por várias vezes a possibilidade de governar de forma autocrática se fosse reeleito. Por vezes fê-lo em tom jocoso – como aconteceu, por exemplo, num “town hall” promovido pela Fox News e moderado por Sean Hannity, em Davenport, Iowa, a 05.12.2023 – o que deu ensejo aos seus fãs para ridicularizarem os Democratas por levarem a sério as provocações de Trump e por, em torno delas, fazerem um alarido desproporcionado (ver capítulo “O déspota esclarecido” em Donald Trump pelas suas próprias palavras). Na maior parte das vezes, Trump limitou-se – como é usual nele – a fazer ameaças vagas e hiperbólicas, no tom de um bêbedo fanfarrão e quezilento (ver capítulo “O anjo vingador” em Donald Trump pelas suas próprias palavras). Mas também houve pelo menos uma ocasião – um vídeo/post publicado nas redes sociais Rumble e Twitter, em Março de 2023 – em que Trump revelou possuir (ou subscrever) um programa de assalto ao poder, que apresentou como um “plano para desmantelar o Deep State e resgatar a democracia das mãos da corrupção em Washington” (ver capítulo “O déspota esclarecido” no artigo acima referido).

Independentemente das reais intenções de Trump, do grau de apoio/oposição do Partido Republicano a tais intenções e da repartição de lugares no Congresso, no final do Verão de 2024 já era previsível, que, “se [fosse] reeleito, o segundo mandato de Trump [seria] diferente do primeiro, em que os ‘freios e contrapesos’ conseguiram circunscrever a sua governação a limites legais e razoáveis” (ver capítulo “Interlúdio jurídico: O presidente-imperador” em Donald Trump: A arte do ludíbrio na era digital). Os eventos ocorridos desde 20 de Janeiro de 2025 têm mostrado que Trump e o movimento MAGA estão, em boa medida, a seguir, com os ziguezagues e sobressaltos decorrentes do carácter volúvel de Trump, o programa resumido no vídeo/post de Março de 2023 e que tem numerosos pontos de contacto com o Project 2025 (ver “Um plano para reconfigurar os EUA (e a civilização ocidental)” em Civilização ocidental: O Grande Cisma de 2025 d.C.).

No seu primeiro mandato, Trump manifestou desagrado sempre que o Congresso se opôs a medidas do executivo e os tribunais anularam decisões suas ou lhe impuseram limitações de algum tipo, mas sujeitou-se a estes “freios e contrapesos” à sua actuação. A inesperada e bizarra decisão de 01.07.2024 do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, determinando que o presidente dos EUA goza de imunidade total no que respeita a actos oficiais, parece ter encorajado Trump a, no segundo mandato, 1) governar através da promulgação de decretos presidenciais (“executive orders”) e da invocação de leis de emergência e de leis arcaicas, obscuras e anacrónicas, sem qualquer consideração pelo Congresso (ainda que o Partido Republicano goze de maioria em ambas as câmaras); e a 2) tentar, sistematicamente, ignorar ordens dos tribunais para suspender ou reverter medidas governamentais que estes concluíram serem ilegais ou inconstitucionais – e é de sublinhar que esta rejeição da autoridade dos tribunais já se estendeu a decisões do Supremo Tribunal de Justiça.

Independence Hall, em Philadelphia, o edifício, erguido em 1753, em que os Pais Fundadores debateram e aprovaram a Declaração de Independência e a Constituição dos EUA. Quadro de 1858 por Ferdinand Richardt

A Administração Trump 2.0 e o movimento MAGA têm mostrado estar plenamente convictos da legitimidade desta forma de actuação do executivo. Quando um tribunal anulou um decreto presidencial, o vice-presidente J.D. Vance lavrou um enérgico protesto na rede social X, argumentando que “se um juiz tentasse dizer a um general como conduzir uma operação militar, tal seria ilegal. […] Os juízes não podem controlar o poder legítimo do executivo”. Numa entrevista publicada no The New York Times a 21.05.2025, Vance reiterou a ideia: “Creio que estamos a assistir a um esforço dos tribunais para, literalmente, ir contra a vontade do povo americano”. Uma vez que o curriculum de Vance inclui um diploma (suma cum laude) em ciência política e filosofia pela Ohio State University e um diploma em Direito pela Universidade de Yale, Vance sabe, seguramente, que, em todas as democracias liberais, o poder executivo tem de ser exercido dentro dos limites da lei e cabe ao poder judicial zelar por isso, mas o sectarismo e a petulância impelem-no a proferir todo o tipo de enormidades.

Quando o juiz James Boasberg se opôs às deportações sem julgamento e sem devida tramitação de cinco imigrantes ilegais venezuelanos para uma prisão em El Salvador, Donald Trump deu largas à sua fúria na rede Truth Social: “Este juíz lunático da esquerda radical, um agitador e um arruaceiro nomeado, infelizmente, por Barack Hussein Obama, não foi eleito Presidente, não ganhou o voto popular […] Eu ganhei, por muitas razões, um mandato avassalador e o combate à imigração ilegal poderá ter sido a razão número um para esta vitória histórica. Só estou a fazer o que os eleitores querem que eu faça. Este juíz, como muitos dos juízes corruptos perante os quais tenho sido obrigado a comparecer, deveria ser destituído!!!” (17.03.2025). A 30.03.2025, voltou à carga, na mesma rede: “Se dependesse do juiz Boasberg e de outros juízes da esquerda radical, ninguém seria deportado o presidente não seria capaz de fazer o seu trabalho e as vidas das pessoas pelo país fora seriam devastadas”.

Paul Dans, o teórico por trás do Project 2025, exprimiu visão análoga: “Um tribunal federal e os seus três funcionários judiciais não podem usurpar o poder concedido ao presidente”.

Trump, Vance e Dans têm razão quando afirmam que o povo americano mandatou Trump para pôr cobro à imigração ilegal, mas esquecem-se de que, na república democrática que são os EUA, o mandato presidencial tem de ser exercido dentro de limites legais, constitucionais e institucionais.

George Washington na assinatura da Constituição dos EUA, durante a Convenção Constitucional de 1787. Quadro de 1856 por Junius Brutus Stearns

Atropelos à lei e à Constituição

Quando, em entrevista ao programa Meet the Press, da NBC, a 04.05.2025, Trump foi confrontado com a desobediência da sua administração a uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça relativa a casos de deportação de imigrantes que não tinham cumprido a tramitação legal (“due process”), Trump respondeu que confiava na procuradora-geral Pam Bondi e que “não estou envolvido na legalidade ou na ilegalidade, tenho juristas para tratar disso, é por isso que tenho um excelente Departamento de Justiça”. Do seu ponto de vista, o que era ilegítimo eram as decisões judiciais contrariando a deportação de hordas de criminosos violentos: “Fui eleito para os expulsar daqui e os tribunais estão a impedir-me de o fazer”. Esta afirmação levou a entrevistadora a perguntar-lhe se, na qualidade de presidente, não estava obrigado a fazer cumprir a Constituição dos EUA, ao que Trump respondeu “Não sei”.

[Excerto de entrevista de Trump ao programa Meet the Press, da NBC, 04.05.2025:]

Embora esteja longe de ser “um génio muito estável”, como costuma vangloriar-se, Trump parece manter uma boa memória e recorda-se certamente de que, no dia 20 de Janeiro de 2025, na sua segunda cerimónia de tomada de posse, pronunciou, perante o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a fórmula prescrita no Artigo 2.º da secção I da Constituição dos EUA: “Juro solenemente que desempenharei fielmente o cargo de presidente dos EUA e que farei tudo o que estiver ao meu alcance para preservar, proteger e defender a Constituição dos EUA”.

Todavia, nas mãos dos dirigentes e dos juristas da Administração Trump 2.0, a Constituição dos EUA parece ser infinitamente flexível. Por exemplo, de acordo com o actual vice-chefe de gabinete, conselheiro de segurança interna (Homeland Security) e director da equipa de redacção de discursos da Casa Branca, Stephen Miller (ver capítulo “O louvaminheiro-mor” em Donald Trump pelas palavras dos seus colaboradores mais próximos), “a Constituição é clara e ela é, sem dúvida, a lei suprema do país, no facto de o privilégio do habeas corpus poder ser suspenso se ocorrer uma invasão. É uma opção que estamos a considerar seriamente. Tudo depende de os tribunais fazerem ou não o que é apropriado” (10.05.2025). O que é “é apropriado”, na perspectiva de Miller, é fácil de definir: é o que vai ao encontro dos desejos do presidente.

Ora, o habeas corpus – a possibilidade de impugnar, com carácter de urgência, uma detenção com base na sua ilegalidade ou arbitrariedade– é um recurso legal que remonta à Inglaterra do século XIV e se tornou – com diferentes formulações, disposições e trâmites legais – universal nas democracias ocidentais, garantindo que não é possível realizar detenções que não sejam devidamente justificadas e enquadradas pela legislação. Por esta razão, a suspensão do habeas corpus só ocorreu por quatro vezes na história dos EUA, todas elas em circunstâncias extremas. Apenas uma delas teve âmbito nacional e teve lugar durante a Guerra Civil Americana; as restantes três ocasiões foram circunscritas no espaço: na Carolina do Sul, no final do século XIX, a fim de combater o Ku Klux Klan; nas Filipinas, em 1905, para sufocar a rebelião contra a ocupação americana; e no Hawaii, em 1941, na sequência do traiçoeiro ataque japonês a Pearl Harbor. A “invasão” a que Miller se refere – a existência, nalgumas partes do território americano, de um número de imigrantes ilegais que muitos cidadão entendem ser excessivo – é uma situação comum a muitos países ocidentais (Portugal incluído) e está longe de justificar a suspensão de direitos legais fundamentais à escala nacional.

O facto de os Republicanos disporem de uma maioria confortável no Supremo Tribunal de Justiça (que conta com três juízes Democratas contra seis juízes Republicanos, três deles nomeados por Trump) e de este ter vindo, com raras excepções, a produzir decisões favoráveis à Administração Trump 2.0. não basta para que os ideólogos MAGA se sintam satisfeitos – o Supremo Tribunal e a Constituição são vistos como empecilhos ao poder absoluto, como se depreende do comentário de J.D. Vance (na supracitada entrevista ao The New York Times), à posição de John Roberts, o presidente (Republicano) do Supremo Tribunal: “Li recentemente uma entrevista com Roberts em que ele afirma que a função dos tribunais é controlar os excessos do executivo. Creio que é uma concepção profundamente errada. Isso é apenas metade do seu trabalho. A outra metade é controlar os excessos do seu próprio ramo”.

Joe Ravi

O Supremo Tribunal dos EUA funciona, desde 1935, neste edifício, em Washington D.C., desenhado pelo arquitecto Cass Gilbert

Mr. Schmitt goes to Washington

A 27.06.2025, de motu proprio ou cedendo à pressão do movimento MAGA, o Supremo Tribunal de Justiça acabou por ir ao encontro da visão de Vance e Trump, decretando, que os tribunais federais não têm poder para anular ou restringir os decretos presidenciais que Trump tem vindo a produzir afanosamente. Quando se soma esta decisão à de 01.07.2024, que confere imunidade total ao presidente dos EUA, ficamos muito perto da tese de Carl Schmitt, o grande teórico do nacional-socialismo, que, em 1934, no artigo “Der Führer schütz das Recht” (O Führer protege a lei), publicado no Deutsche Juristen-Zeitung (Jornal dos Juristas Alemães) de 01.08.1934, estabeleceu que “O Führer protege a lei dos piores abusos quando, em momentos de perigo, cria justiça imediata através da sua liderança como autoridade judicial suprema […] O verdadeiro líder é também um juiz e é da sua liderança que decorre a justiça”. Em 1933, no ensaio “Estado, movimento, povo: A natureza tríplice da unidade política”, Schmitt já tinha estabelecido que a concentração de todo o poder nas mãos de Hitler, após a vitória nas eleições de 3 de Março desse ano (convocadas por Hitler apesar de as eleições que o guindaram a chanceler terem tido lugar a 30 de Janeiro), fora “formalmente correcta e conforme à Constituição em vigor”. Esta posição de Schmitt ignorava, convenientemente, que 1) o poder tinha sido conquistado pelo partido nazi (NSDAP) através de eleições que estiveram longe de serem democráticas e livres (as milícias nazis e as polícias sob controlo do NSDAP criaram um clima de terror e intimidação); e que 2) a maioria parlamentar de 2/3 necessária à aprovação da Lei da Concessão de Plenos Poderes, a 23 de Março, só tinha sido possível com a prisão dos deputados do Partido Comunista e o impedimento da entrada dos deputados do SPD no Reichstag, uma vez que o NSDAP apenas detinha 288 lugares num total de 647.

Se Carl Schmitt ficou na história da Alemanha como o responsável pela legitimação jurídica do assalto ao poder por Hitler e pelo NSDAP, o Supremo Tribunal de Justiça dos EUA parece pretender ocupar lugar análogo na história dos EUA, ao legitimar a parte mais substancial das prepotências da Administração Trump.

Carl Schmitt, 1932

Tudo leva a crer que, aos olhos dos líderes MAGA, também o Congresso constitui um empecilho à governação. Numa verdadeira democracia, se o poder executivo entende que as leis existentes são inadequadas à eficaz governação do país, o que seria natural é que tentasse persuadir o Congresso a aprovar novas leis ou rever as anteriores, tarefa que é facilitada , no caso vertente, por o Partido Republicano deter a maioria em ambas as câmaras do Congresso. É verdade que esta maioria não é muito larga e que alguns congressistas Republicanos têm levantado objecções pontuais a medidas da Administração Trump. Porém, essas dissidências, que assumiram maior notoriedade durante o processo de discussão do orçamento baptizado como “Big Beautiful Bill” (ver capítulo “Cuidar dos desvalidos é socialismo?” em Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 1: Poder e dinheiro), ou têm acabado por ser reprimidas (Trump pressionou fortemente os congressistas desalinhados, que estão agudamente conscientes de que a sua reeleição depende do seu aval), ou nunca passaram de rábulas inócuas, destinadas a conferir aos seus protagonistas um simulacro de “consciência social” perante o seu eleitorado. Os congressistas Republicanos que acusaram (sonoramente e em frente das câmaras da televisão) o “Big Beautiful Bill” de conter medidas iníquas e contrárias aos seus elevados princípios acabaram por votar (pela calada) a favor dele, como, provavelmente, sempre tinham planeado fazer. Ou seja, na prática, o Congresso tem acabado por aprovar a actuação da Administração Trump 2.0.

Apesar desta situação favorável, Trump tem preferido governar através de decretos presidenciais e de leis fossilizadas, anacrónicas, obscuras e que não se ajustam aos contextos em que têm sido invocadas, o que mostra o seu enfado ou desprezo pelo debate parlamentar – uma característica comum a muitos autocratas.

Finalmente, Trump deu provas de estar disposto a derrubar outro pilar da democracia americana que é a autonomia dos estados que constituem a república federal, ao enviar tropas para Los Angeles, a pretexto de pôr cobro a uma alegada vaga de motins na cidade, em reacção à detenção de imigrantes ilegais pelo ICE (Immigration and Customs Enforcement). Acontece que 1) as manifestações surgiram por a actuação do ICE não se conformar ao “due process” e por empregar força desproporcionada; 2), a maioria das manifestações contra o ICE foram pacíficas e só pontualmente degeneraram em desacatos; 3) estes circunscreveram-se a uma pequena área na baixa da cidade (cinco quarteirões num território com 4 milhões de habitantes e 1200 km2); 4) a vida fora desta pequena área continuou a decorrer como usualmente; e 5) as forças policiais nunca perderam o controlo da situação. A convocação por Trump de unidades da Guarda Nacional e dos marines a fim de reprimir os “motins” não só foi desproporcionada face à gravidade e à escala das manifestações (Trump descreveu-as como “uma invasão estrangeira”, baseando-se no facto de alguns imigrantes ostentarem bandeiras mexicanas), como foi um atropelo deliberado e ostensivo às competências do governador (Democrata) do estado, que não só não solicitou o envio de tropas federais como se opôs reiteradamente ao seu envio.

A Guarda Nacional nas ruas de Los Angeles, 12.06.2025

Trump está aqui a seguir um consagrado modus operandi dos líderes populistas com aspirações autoritárias: através de truques propagandísticos, empola pequenas perturbações da ordem pública – de que ele foi, em última análise, o causador – de forma a criar na opinião pública a ideia de caos generalizado e iminente colapso civilizacional e justificar uma intervenção “musculada”, a fim de repor a ordem. A intempestiva demonstração de força de Trump tem, neste caso, o benefício adicional de passar a ideia de que o governador da Califórnia e a presidente da câmara de Los Angeles – e os Democratas em geral – são tíbios, indecisos e incompetentes. Trump talvez alimentasse a esperança de que as manifestações na baixa de Los Angeles contra o ICE fossem o seu “incêndio do Reichstag” – o incidente que deu a Hitler pretexto para persuadir o presidente Hindenburg (a deslizar para a senilidade) para promulgar, logo no dia seguinte, 28 de Fevereiro de 1933, o Decreto para Protecção do Povo e do Estado, que suspendeu as liberdades cívicas e permitiu a Hitler enviar boa parte dos seus opositores políticos para a prisão, facilitando a vitória nas eleições de 3 de Março. Todavia, as manifestações em Los Angeles acabaram por dissipar-se sem consequências. Restará a Trump esperar por uma nova e mais séria sarrafusca que lhe permita reclamar poderes excepcionais.

Incêndio do Reichstag, 27.02.1933

O homem que ousou drenar o pântano

Há comentadores políticos e historiadores, geralmente situados à direita, que, embora não sendo admiradores de Trump, nem do seu modo de actuar, nem da sua propensão autocrática, conseguem encontrar mérito na sua tentativa de tornear ou descartar os “freios e contrapesos” do sistema político americano e na investida contra a máquina do Estado federal. Argumentam que, ao menos, Trump estará a tentar quebrar o imobilismo, a fazer abanar uma estrutura que se tornou tão complexa, pesada e anquilosada que impede os governantes – seja qual for a sua inclinação política – de conduzirem o país de acordo com a sua visão e de fazerem as “reformas estruturais” que se impõem.

É certo que muitos organismos do Estado acabam, passado algum tempo de existência, por remeterem para plano secundário (ou olvidarem por completo) os objectivos que presidiram à sua criação e por assumirem como exclusiva prioridade a sua autoperpetuação e, se possível, a dilatação da sua esfera de competências, do seu poder e do seu orçamento. Por outro lado, há, nesses departamentos, muitos funcionários que se convencem de que a sua missão consiste, não em servir o Estado e a causa pública, mas em defender as suas prerrogativas e mordomias e em manter, tanto quanto possível, o statu quo, pelo que tentarão bloquear qualquer intenção reformista de um governante com um emaranhado de leis, regulamentos, cláusulas, formalismos, tradições, impedimentos burocráticos, manobras dilatórias e retórica deliberadamente críptica, consolidado por apreciáveis doses de tergiversação, ronha, manipulação e astúcia – e não existe mais perfeita encarnação deste espírito imobilista do que a personagem Humphrey Appleby, o “secretário permanente” do ministro Jim Hacker, na série televisiva Yes minister (e na sua sequela, Yes prime minister).

A tendência para o anquilosamento da máquina do Estado é um problema sério e tanto afecta democracias como regimes autoritários. Nos segundos, o líder supremo tem poder para cortar a direito, suprimir ou alterar leis e regulamentos, demitir quem se lhe opõe ou “faz de morto” e impor a sua vontade, o que não tem impedido as autocracias de desenvolver burocracias desmesuradas e estarrecedoramente ineficientes; já nas democracias quem ascende ao poder executivo tende a resignar-se às limitações que lhe são impostas. Isto pode ser exasperante para um presidente ou um primeiro-ministro genuinamente apostado em servir o país e que possui uma visão de futuro para ele. Mas a inércia do sistema também dificulta que um energúmeno (no sentido original do termo, que tem a mesma raiz grega que “energia” e cujo significado é afim de “desaustinado”) arruíne o país com medidas insensatas e arbitrárias; que um vigarista use o seu poder para se locupletar e para favorecer os seus amigos e cúmplices, com prejuízo para a nação; ou que um autocrata se instale vitaliciamente no poder. E, uma vez que Trump combina na sua exuberante personalidade, características de energúmeno, vigarista e autocrata, é salutar que a sua acção seja tolhida pela viscosidade do “pântano” de Washington. Até porque a intenção de Trump não é, como tem anunciado repetidamente, “drenar o pântano”, mas tão só substituir os sapos, as serpentes e os crocodilos que nele estão instalados por sapos, serpentes e crocodilos do seu círculo de fiéis e de cúmplices.

Boston Public Library

Uma capital rodeada de água: Plano de urbanização de Washington D.C., conhecido como Plano L’Enfant e encomendado em 1791 por George Washington ao engenheiro militar Pierre Charles L’Enfant

De qualquer modo, a arremetida de Trump contra a máquina de Washington está tão longe de ser a reforma do Estado ansiada pelos libertários como soltar um touro numa loja de porcelanas está de ser uma maneira de melhorar a arrumação desta. Trump não tem uma visão congruente e racional para o país, como atestam as divagações trôpegas em que se transformam as suas intervenções públicas ao fim de meio minuto (ver Donald Trump pelas suas próprias palavras). Por isso, é duvidoso que, no lugar das estruturas que está a desmantelar, tenha outras mais eficientes e ágeis para erguer no seu lugar – no que respeita às agências estatais com competências regulatórias, a intenção parece ser, simplesmente, deixar o terreno vazio, o que convém a muitas empresas. Por outro lado, para lá do despedimento em massa de funcionários do Estado, do encerramento ou desvitalização de departamentos e de cortes cegos no seu financiamento, o frenesim “anti-sistema” de Trump tem também visado tudo o que ele interpreta como estorvo ao seu poder.

Se a ideia de que a independência do sistema judicial e a Constituição são empecilhos ao progresso e ao empreendedorismo e aliados do Deep State é difícil de sustentar por alguém que se reclame democrata, ainda mais bizarro é que o sector libertário subscreva um exercício do poder que desemboca na autocracia, na arbitrariedade e no despotismo.

Uma Machergreifung americana?

Há comentadores políticos e historiadores, geralmente situados à esquerda, que têm comparado a actuação da Administração Trump 2.0 nos seus primeiros meses de mandato à “Machergreifung”, designação dada à captura do poder absoluto pela parte do Partido Nazi (NSDAP, na sigla alemã), nos meses que se seguiram à tomada de posse de Adolf Hitler como chanceler, a 30.01.1933. A “Machergreifung” foi consubstanciada, entre outras medidas, pela promulgação do Decreto para a Protecção do Povo e do Estado, de 28.02.1933, que teve como pretexto o incêndio do Reichstag, e da Lei de Concessão de Plenos Poderes, de 23.03.1933, que permitia ao chanceler promulgar e fazer aplicar legislação sem o envolvimento do parlamento ou do presidente da República. Face a estes antecedentes, alguns historiadores e politólogos – incluindo Timothy Snyder, professor na Universidade de Yale e reputado especialista na história do totalitarismo – que já tinham apodado a última campanha eleitoral de Trump de fascista aplicam agora o mesmo adjectivo, ainda com maior assertividade, à Administração Trump 2.0.

Poucas pessoas estudaram tão profundamente o fascismo como Snyder, mas o autor destas linhas, talvez por ter vivido um período da história portuguesa em que “fascista” era rótulo liberalmente aplicado a qualquer pessoa que tivesse uma atitude prepotente ou, mais simplesmente, com quem não se simpatizasse (ver capítulo “Um insulto genérico” em Um mundo cheio de porcos fascistas?), prefere limitar o termo “fascista” a regimes que cumpram as cinco condições estabelecidas pelo sociólogo britânico Michael Mann em Fascists, de 2004 (ver capítulo “Como reconhecer um fascista”, no artigo supracitado), pelo que considera que, embora Trump se tenha aproximado, desde a sua derrota (nunca reconhecida) nas eleições de 2020, do perfil fascista, continua (por enquanto) a não cumprir as cinco condições. Porém, nunca é de mais enfatizar que não é por Trump (ou qualquer outro governante com inclinações autocráticas) não ser catalogável como fascista que é menos perigoso (ver capítulo “Trump é fascista?”, no artigo supracitado).

Não é preciso regressar à Alemanha de 1933 para encontrar as raízes do “trumpismo”, basta recuar até aos EUA de 2010. Por esta altura, Trump começava a manifestar uma vaga e intermitente ambição política, mas ainda não dava mostras de ter orientação ideológica definida e as suas erráticas proclamações políticas eram vistas (quiçá acertadamente) como mera forma de promover o seu reality show, The Apprentice. Porém, já então, muitas das causas que hoje associamos ao “trumpismo” ganhavam força nos EUA, só que, na altura, eram promovidas pelo Tea Party. Este surgira apenas em 2009, mas rapidamente ganhara ímpeto e fora decisivo na retumbante vitória dos Republicanos nas eleições intercalares de Novembro de 2010, em que estes obtiveram mais sete lugares no Senado, mais 63 lugares na Câmara dos Representantes, mais seis mandatos de governador e o controlo de mais 20 legislaturas estaduais.

“Onda vermelha”: Resultados das eleições intercalares de 2010: a vermelho-escuro, conquistas Republicanas, a azul-escuro, uma solitária conquista Democrata; a rosa e a azul-claro, manutenção do statu quo

O Tea Party começou por ter uma agenda centrada no “emagrecimento do Estado” e na redução de impostos e do deficit do Governo federal, mas não tardou a incorporar temas como o combate à imigração ilegal, a reivindicação da construção de muros nas fronteiras com o México e o Canadá, a exaltação dos valores da família e do cristianismo, a islamofobia e a proibição do aborto em qualquer circunstância.

Trump está longe de ser um mestre em filosofia política, mas tem um apurado sentido de oportunidade e uma arguta compreensão da psicologia das massas americanas e terá intuído que as causas do Tea Party encerravam grande potencial de mobilização dos “descontentes”. Não por acaso, a primeira intervenção política em que Trump foi levado a sério pelos círculos políticos americanos teve lugar três meses depois da “onda vermelha” ditada pelas eleições de Novembro de 2010 – foi na Conservative Political Action Conference (CPAC) de Fevereiro de 2011.

Trump discursa na CPAC 2011

No tempo decorrido entre o discurso de Trump na CPAC de Fevereiro de 2011 e Junho de 2015, quando Trump anunciou a candidatura às eleições presidenciais de 2016, o Tea Party perdeu algum fulgor. Nas eleições primárias no Partido Republicano que precederam as eleições de 2012, os candidatosdo Tea Party nem sempre lograram impor-se aos Republicanos moderados e a sua hostilidade a Obama não conseguiu impedir que este fosse reeleito (ainda que com vantagem menos expressiva do que em 2008). Mas Trump continuou a crer no potencial de crescimento do eleitorado que se identificara com as causas do Tea Party e não perdeu tempo: em Agosto de 2015, dois meses depois de anunciar a sua entrada na política, proclamou que “as pessoas do Tea Party são gente incrível. São pessoas que trabalham no duro e estão sempre a ser maltratados pelos media”. Um ano depois, Trump tinha, graças a esta “gente incrível”, derrotado os principais adversários nas eleições primárias Republicanas para a corrida presidencial – Ted Cruz, Rand Paul e Marco Rubio, três figuras que tinham chegado a senadores com o apoio do… Tea Party. Após ter seduzido o eleitorado do Tea Party, Trump teve a astúcia e a arte de o esvaziar completa e instantaneamente, substituindo-o pelo “trumpismo”. O ideário fundamental do “trumpismo” não é mais do que uma remastigação do ideário do Tea Party (apimentado por alguns ódios de estimação e obsessões de Trump), mas enquanto o Tea Party nunca teve uma figura emblemática e foi corroído por dissensões internas, o “trumpismo” tinha (e tem) à sua cabeça uma excêntrica, caprichosa, exuberante, grotesca e dominadora vedeta da reality TV, um líder “bigger than life”, com aura messiânica.

Library of Congress

O Tea Party original, onde o Tea Party do século XXI foi buscar o nome, foi um protesto de patriotas americanos da (então) colónia britânica de Massachusetts, que se insurgiram contra a política fiscal das autoridades britânicas e, a 12 de Dezembro de 1773, no porto de Boston, atiraram à água um carregamento de chá da Companhia das Índias Orientais. Gravura no livro The history of North America (1799), por William Cooper

“Aquele que salva o seu país…”

Também não é preciso invocar a Alemanha de 1933 para encontrar as raízes das manobras da Administração Trump para concentrar no presidente um poder inaudito. Desde a génese da nação americana que esta corrente se manifesta na política dos EUA e, já em 1788, um anónimo que se opunha ao federalismo e assinava como “Federal Farmer”, advogava que “um só homem parece ser particularmente adequado para supervisionar a execução das leis com discernimento, determinação, prontidão e uniformidade”. A “teoria do executivo unitário”, que defende que o presidente não está limitado na sua actuação nem pelo Congresso nem pelos tribunais, viria a ganhar consistência na década de 1970 e resultou num aumento progressivo dos poderes presidenciais, nomeadamente durante os mandatos de Ronald Reagan, que seguiu de perto as linhas orientadoras do documento Mandate for leadership, produzido pelo think tank conservador Heritage Foundation (ver capítulo “Um plano para reconfigurar os EUA (e a civilização ocidental)” em Civilização ocidental: O Grande Cisma de 2025 d.C.), nomeadamente aquela que advogava, a pretexto da restruturação da administração federal, a instalação de gente de confiança (i.e., alinhada com a ala direita dos Republicanos) em numerosos lugares-chave do Estado americano.

No século XXI, o promotor mais notório da “teoria do executivo unitário” foi Dick Cheney, vice-presidente de George W. Bush entre 2001 e 2009, que tirou partido da situação de excepção criada pelos atentados de 11 de Setembro de 2001 e pela “guerra ao terrorismo” para justificar a dilatação dos poderes presidenciais. O empenho que Cheney mostrou, durante o seu mandato, em promover a concentração de poderes no presidente é perfeitamente compreensível: George W. Bush era destituído de qualificações para ser presidente de uma delegação local do Rotary Club, quanto mais da nação mais poderosa do mundo, pelo que, na prática, parte substancial da governação entre 2001 e 2009 foi assegurada pelo experiente e calculista Cheney (e, em menor medida, pelo secretário da Defesa Donald Rumsfeld), o que leva muitos historiadores a considerarem Cheney como o mais poderoso vice-presidente da história dos EUA (ver capítulo “43.º Presidente: George W. Bush” em Quem foram os piores presidentes da história dos EUA?).

Dick Cheney (à esquerda) aplaude George W. Bush no discurso sobre o estado da União (State of the Union), em 2003

Cheney, que, em 2009, era visto como estando na ala direita do partido e que era a figura do Governo mais execrada pelo sector “liberal” da sociedade americana, não alterou significativamente o seu ideário e a sua mundividência; porém, nas eleições presidenciais de 2024, assumiu o seu apoio a Kamala Harris nestes termos: “Na história de 248 anos do nosso país, nunca existiu um indivíduo que representasse maior perigo para a nossa república do que Donald Trump. Tentou aldrabar a última eleição em seu favor, recorrendo a mentiras e a violência para se manter no poder após os eleitores o terem rejeitado. Nunca poderemos confiar-lhe novamente o poder. Como cidadãos, temos o dever de colocar o país acima das divisões partidárias, a fim de defender a Constituição”. Dificilmente se encontrará comprovativo mais eloquente da marcada deriva do Partido Republicano para a extrema-direita nos últimos 15-16 anos.

Paul Dans, ex-director do Project 2025, é, nos nossos dias, um dos mais entusiásticos promotores da “teoria do executivo unitário”: “A nossa Constituição delega, clara e exclusivamente, o poder executivo no presidente dos EUA. As interferências nesse poder a que assistimos nos últimos 100 anos não só são inconstitucionais, como são antidemocráticas e destituídas de legitimidade moral, no sentido em que, se o povo vota de quatro em quatro anos num presidente para implementar uma nova política, e se essa política for obstruída por uma burocracia não-eleita e não-responsabilizável, então temos de atacar esse problema” (entrevista ao jornal digital Politico, 16.03.2025).

A tentativa de Trump de governar sem aceitar as restrições que lhe são constitucionalmente impostas, torneando o Congresso, não cumprindo as decisões dos tribunais e tentando intimidar juízes, tem paralelos na Turquia de Recep Tayyip Erdoğan – uma autocracia com eleições – e na Hungria de Viktor Orbán – uma “democracia iliberal”, na paradoxal definição do próprio Orbán. Trump tem exprimido publicamente a sua admiração por Orbán e Putin (ver capítulo “O ás da geopolítica” em Donald Trump pelas suas próprias palavras) e percebe-se por que o faz: inveja nestes governantes a forma expedita como anularam a oposição, silenciaram os mass media independentes (ou facilitaram a aquisição destes por empresários seus amigos), restringiram a liberdade de expressão, anestesiaram ou intimidaram a opinião pública, preencheram o sistema judicial (Tribunal Constitucional incluído) com pessoas da sua confiança, promoveram revisões constitucionais que vão no sentido da “teoria do executivo unitário” (e que, no caso de Erdoğan e Putin, acabaram com a regra da limitação de mandatos presidenciais, algo com que Trump também sonha, intermitentemente) e criaram a ilusão de uma atmosfera de concórdia nacional, em cujo pináculo está o Homem Providencial que dirige firme e sabiamente a Nação.

Viktor Orbán (no extremo direito) é recebido por Vladimir Putin no Kremlin, 01.02.2022

A 15.02.2025, Trump sintetizou a sua convicção de que, na qualidade de presidente dos EUA, tudo lhe é permitido e todas as suas acções estão justificadas de antemão escrevendo, nas redes Truth Social e X, “Aquele que salva o seu país não viola lei alguma”, frase usualmente atribuída a Napoleão e surgida pela primeira vez em 1833, sem menção a fontes, em Maximes et pensées de Napoléon, obra compilada por Honoré de Balzac. Ainda que nada confirme a atribuição a Napoleão, a verdade é que a frase combina na perfeição com Napoleão, um autocrata narcisista, jactancioso e de ambição desmedida, que mudava de “princípios” consoante as suas conveniências a cada momento – tal como Trump.

O imperador Napoleão distribui as “águias” (estandartes regimentais) ao Exército, a 5 de Dezembro de 1804. Quadro de 1810 por Jacques-Louis David

Os constantes atritos de Trump com outros órgãos de soberania e com instituições da sociedade civil decorrem de ele não compreender – ou de rejeitar – a essência do regime democrático liberal. Quando tenta intimidar e ameaça demitir o presidente da Reserva Federal, quando barafusta contra os “juízes da esquerda radical” que o impedem de fazer o seu trabalho, quando desmantela ou debilita entidades reguladoras, quando tenta coarctar a liberdade das universidades e quando denigre sistematicamente os mass media que dão notícias que não lhe agradam ou que reprovam a sua actuação, o argumento recorrente de Trump é que ele foi eleito pelos americanos, enquanto estes órgãos e instituições carecem de legitimidade popular. Ora, a independência do banco central, dos tribunais (incluindo o Tribunal Constitucional, ou, no caso americano, o Supremo Tribunal de Justiça), das entidades reguladoras, das universidades e dos mass media em relação ao Governo é um elemento estrutural da democracia moderna e uma das mais árduas e valiosas conquistas da civilização ocidental. Sem essa independência, estaríamos perante um regime que só poderia ser classificado como uma monarquia absoluta electiva – uma vez sufragado pelo povo, o presidente dos EUA poderia, caso dispusesse de maiorias na Câmara dos Representantes e no Senado, governar como um imperador.

O fim da Era Progressista

Os 141 decretos presidenciais assinados por Donald durante os primeiros 100 dias do segundo mandato (um afã que tem prosseguido, ainda que em ritmo menos frenético) tiveram dois objectivos. Um foi deixar a oposição Democrata atordoada perante uma saraivada de medidas da mais variada natureza, relevância e âmbito, pondo em prática um procedimento que o estratega MAGA Steve Bannon descreveu como “flood the zone”. Neste, interessa menos o acerto e a eficácia das medidas, do que o facto de serem numerosas e de parte delas serem arbitrárias, ridículas, disparatadas ou eticamente reprováveis, o que deixará a oposição e os mass media ultrajados, desorientados e incapazes de escolher quais deverão analisar, denunciar e contestar. A ideia é que o tempo e a energia gastos a atacar uma frioleira como o rebaptismo do Golfo do México não estarão disponíveis para tentar desmontar uma medida que aumenta a opacidade dos mercados de criptoactivos ou de outra que priva de assistência médica alguns milhões de americanos.

[Steve Bannon explica a táctica “flood the zone”:]

Porém, sendo Trump um narcisista patológico, obcecado em suplantar, em todos os domínios, todos os presidentes americanos que o precederam (ver capítulo “Competindo com defuntos célebres” em Donald Trump: A verdade de quem diz 21 mentiras por dia), é razoável presumir que a azáfama dos “primeiros 100 dias de Trump 2.0” também pretendia ofuscar os célebres primeiros 100 dias de Franklin D. Roosevelt, que, confrontado com a situação de profunda crise em que os EUA e o mundo estavam mergulhados em 1933, lançou, assim que tomou posse, um ambicioso programa de revitalização da economia e de restauração da confiança da população. Todavia, os “primeiros 100 dias” de Roosevelt e de Trump têm diferenças substanciais: as 77 leis promulgadas em 100 dias por Roosevelt eram pertinentes e urgentemente necessárias; não incluíam distracções como alterações na toponímia ou a criação do Gabinete de Fé da Casa Branca; obtiveram a aprovação do Congresso; foram postas em prática; e constituíram o esqueleto do New Deal, que, efectivamente, começou a retirar os EUA do buraco para onde tinham sido atirados pelo crash bolsista de 1929 e pela inepta reacção a este pela parte da Administração Hoover.

18 de Maio de 1933: Franklin D. Roosevelt assina uma das medidas cruciais dos “primeiros 100 dias”, a constituição da Tennessee Valley Authority, uma agência estatal com a missão de dinamizar a economia e gerir a construção de infra-estruturas na bacia hidrográfica do Rio Tennessee

Já os “primeiros 100 dias” de Trump assentaram em decretos presidenciais, cuja legalidade tem vindo a ser contestada (por vezes com sucesso) nos tribunais, e tem sido caracterizada, no caso da política aduaneira, por sucessivos, incongruentes e caprichosos avanços e recuos pela parte de Trump. que, em vez de darem novo alento a uma economia comatosa, ameaçam lançar na recessão a economia saudável que Trump herdara da Administração Biden.

Provavelmente, outro dos objectivos dos “primeiros 100 dias” de Trump terá sido anular o que, aos olhos dos ideólogos do movimento MAGA, foi o maior pecado dos “primeiros 100 dias” de Roosevelt: a criação de um Estado federal gigantesco, disforme, ineficiente e extremamente oneroso (e, a dar crédito à opinião dominante no meio MAGA, infestado de marxistas radicais pró-islâmicos). Na perspectiva de Paul Dans, ex-director do Project 2025, desde a presidência de Franklin Roosevelt (1933-45), quiçá mesmo de Woodrow Wilson (1913-21), implantou-se a ideia “de que uma classe de tecnocratas iria supervisionar a vida de todos nós e que o cidadão comum não teria qualquer capacidade para decidir o seu próprio destino” – um estado de coisas que Dans designa, depreciativamente, como a “Era Progressista” (entrevista ao jornal digital Politico, 16.03.2025).

28 de Abril de 1935, Casa Branca: O marxista Franklin Roosevelt prepara-se para fazer uma alocução ao país, versando os “work relief programs” da recém-criada Work Projects Administration (programas de obras públicas destinados a diminuir o desemprego e dinamizar a economia) e a Lei da Segurança Social, então em processo de aprovação no Congresso e que faria com que os EUA deixassem de ser um dos raros países desenvolvidos sem sistema de segurança social

Um monstro difícil de matar

Para levar a cabo a missão de aniquilar o “monstro” estatal, Trump deu plenos poderes a Elon Musk e ao seu DoGE, um passo que Paul Dans qualificou como revolucionário: “Com o advento da IA e de técnicos como Elon Musk, temos, pela primeira vez, uma visão holística do Governo”, permitindo rastrear “os biliões e biliões de dólares de despesas que não estão devidamente justificadas e que provam que o sistema foi construído, intencionalmente, de forma que ninguém consiga compreendê-lo e que nenhum pagamento seja rastreável”. Como exemplo das fraudes de “biliões e biliões” descobertas pelo DoGE, Dans mencionou o caso, amplamente divulgado por Musk e Trump, do pagamento sistemático de pensões a milhões de pessoas com mais de 140 anos de idade (Musk chegou a avançar que existiriam 20 milhões e pessoas/zombies nesta situação). Este absurdo foi prontamente desmentido pela Segurança Social, que explicou que o facto de, devido a limitações na arquitectura original do sistema informático, este manter nos registos pessoas nascidas há mais de 140 anos, não significava que elas estivessem a receber pensão – quanto mais não fosse por a Segurança Social cessar automaticamente pagamentos quando um pensionista atinge os 115 anos. Mas, como é usual na propagação de informação nas redes (ditas) sociais, as mentiras alastram de forma avassaladora, enquanto os desmentidos não vão longe e passam despercebidos (ver capítulo “A mentira tem perna curta?” em O futuro aos algoritmos pertence).

Ainda assim, será difícil disfarçar o fiasco do DoGE: Musk anunciara poupanças de 2 biliões de dólares, baixou as expectativas para 165.000 milhões e terá obtido, numa estimativa optimista, poupanças efectivas de 65.000 milhões. As poupanças criadas pelo DoGE talvez venham mesmo a revelar-se contraproducentes, já que um estudo da Partnership for Public Service sugere que elas poderão representar, para os contribuintes americanos, custos de 135.000 milhões, só em 2025. Parte destes custos corresponde a indemnizações a pagar aos funcionários “abatidos”, outra parte resulta da quebra nas receitas fiscais em resultado de se prever que o Internal Revenue Service (o homólogo da nossa Autoridade Tributária) irá perder, no processo de “emagrecimento”, 1/4 da sua força de trabalho.

A ideia de que boa parte da despesa do Estado federal pode ser facilmente eliminada é antiga, como atesta este cartoon c.1926, por Clifford K. Berryman, em que o presidente Calvin Coolidge alivia o fardo suportado pelo Tio Sam e comenta que “muitos mais [pacotes] podem ainda ser retirados”

O que o movimento MAGA não soube ou não quis explicar foi a razão de este “monstro” ter subsistido (e até engordado) ao longo de 92 anos. Ora, após os mandatos dos Democratas Roosevelt e Truman, os Republicanos regressaram à Casa Branca em 1953, com Dwight Eisenhower, mas este não destruiu as estruturas federais que Roosevelt tinha criado. Tão pouco o fizeram os presidentes (Republicanos) Richard Nixon (1969-74), Gerald Ford (1974-77), Ronald Reagan (1981-89), George H.W. Bush (1989-93) e George W. Bush (2001-09). Terão todos estes presidentes sido criptocomunistas? Terá a Guerra Fria sido uma farsa em que duas superpotências marxistas-leninistas fingiram defrontar-se para mais facilmente dominarem o mundo? Ou será que, sem prejuízo da necessidade da correcção de excessos, desequilíbrios e excrescências, o Estado federal “criado” por Roosevelt tem desempenhado um papel vital na sociedade americana ao longo destes 92 anos?

A sanha da direita americana contra o seu Estado supostamente desmedido pode parecer ainda mais insólita quando se considera a despesa governamental como percentagem do PIB no contexto dos restantes países desenvolvidos: em 2024, nos EUA foi de 37%, um valor relativamente baixo pelo padrão do mundo ocidental, onde se situa usualmente acima dos 40% (foi de 43% em Portugal) e atingiu os valores mais elevados na Bélgica, com 55%, na Finlândia, com 56%, e na França, com 57% – país que, na perspectiva do americano médio, tem vivido sob um regime comunista ou, vá lá, socialista (ainda que o presente Governo, liderado por Emmanuel Macron, seja de centro-direita). Nos EUA, alguns sectores que os restantes países desenvolvidos consideram pertencer à esfera de responsabilidade do Estado, como o sistema prisional e os serviços de bombeiros, têm vindo a ser abertos à iniciativa privada.

Despesa governamental como percentagem do PIB no mundo, dados de 2023, FMI

A verdade é que, independentemente de a orientação dos governos ser mais à direita ou mais à esquerda, no último século e meio, o mundo ocidental assistiu a um consistente aumento da despesa do Estado como proporção do PIB, decorrente da assunção de uma série de responsabilidades para com os seus cidadãos – claro que na análise da tendência geral é necessário que nos abstraiamos das flutuações da despesa governamental associada a conflitos bélicos ou pandemias. Em 1870, o Estado francês – que, já então era recordista na despesa – gastava 13% do PIB; a despesa pública subiu para 19% em 1930 e passou a barreira dos 40% em 1980. Nos EUA, essa despesa foi de 4% em 1870, 3% em 1930 e 34% em 1980. O New Deal de Roosevelt fez a despesa do Estado atingir um pico de 19% em 1934, o envolvimento na II Guerra Mundial fez com que chegasse a 37% em 1945, mas em 1948 já tinha caído para 21%. Em 1970, com o Republicano Nixon, a despesa passou a barreira dos 30% e assim permaneceu até hoje; Reagan, renomado paladino do “Estado mínimo”, limitou-se a conter a subida da despesa, que se manteve em torno de 34-36% durante os seus oito anos na Casa Branca.

Despesa governamental como percentagem do PIB em 1800-2023, na Alemanha, Reino Unido, Japão, EUA e China

Claro que o aumento de despesa do Estado como proporção do PIB não é, em si mesmo, um indicador de desenvolvimento: o critério primordial é se os cidadãos sentem que o que entregam ao Estado sob a forma de impostos e contribuições lhes é devolvido sob a forma de serviços públicos de qualidade e apoios sociais. Por outro lado, também os cortes na despesa não são inerentemente “virtuosos” e, no caso do despedimento maciço e irreflectido de funcionários, podem até gerar repercussões negativas duradouras, ao desbaratar “know how” que levou muitas décadas a desenvolver.

No caso da vaga de cortes “nas gorduras do Estado”, conduzida pelo DoGE de Elon Musk, fica a dúvida se 1) ela terá sido guiada por princípios de racionalização e de combate ao desperdício; ou 2) se os despedimentos, os cortes orçamentais e a extinção de serviços visaram criar um vazio a ser colmatado pela iniciativa privada; ou se 3) foram actos puramente políticos, destinados a limpar a burocracia estatal de funcionários com espírito de independência e a instilar nos restantes funcionários uma atitude de subserviência à hierarquia.

Apêndice I: a maior ameaça à saúde pública

A saúde é uma das áreas de acção governamental mais prejudicadas pela Administração Trump 2.0, o que resulta não só dos cortes atabalhoados e levianos do DoGE, como da nomeação de Robert F. Kennedy Jr. (RFK Jr.) como secretário da Saúde e Serviços Humanos, um cargo que pode ser visto como similar ao de ministrp da Saúde nos países europeus (sobre RFK Jr., ver capítulo “A política como transacção” em Donald Trump: A arte do ludíbrio na era digital).

Gage Skidmore

RFK Jr. e Trump, no comício na Desert Diamond Arena, em Glendale, Arizona, a 23.08.2024, em que o primeiro anunciou o apoio ao segundo

O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) tem competências mais amplas do que o nosso Ministério da Saúde e integra 27 institutos, agências e gabinetes, alguns das quais com dimensão e responsabilidades abrangentes, como sejam o NIH (National Institutes of Health), que se ocupa da investigação sobre medicina e saúde pública, o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), que supervisiona os riscos de saúde pública, o CMS (Centers for Medicare & Medicaid Services), que gere os programas Medicare e Medicaid (os sistemas estatais de seguros de saúde), e a FDA (Food and Drug Administration), que se ocupa da segurança alimentar e da supervisão de produtos farmacêuticos e veterinários (combinando atribuições das nossas ASAE e Infarmed). O orçamento anual do HHS é de 1.72 biliões (1.720.000.000.000) de dólares (em 2024), representando um quarto de toda a despesa do Governo federal (o orçamento do Ministério da Saúde português foi, no mesmo ano, de 15.000 milhões de euros, representando 13% da despesa pública). A existência, em cada país, de um conjunto articulado de entidades estatais consagradas à investigação médica, à vigilância e avaliação na área da saúde pública, à emissão de alertas e recomendações e à regulação do sector da saúde, e que trocam informação com as suas homólogas de outros países e com as agências internacionais, é uma realidade implantada, paulatinamente, ao longo do século XX e a ela devemos o facto de, na era da circulação hiperacelerada de pessoas e bens, a humanidade não ser atormentada todos os anos por pandemias ou por graves problemas de saúde decorrentes do consumo de produtos alimentares e fármacos que não cumprem os requisitos de qualidade e segurança.

Porém, esta árdua conquista civilizacional ameaça desmoronar-se, já que, no seu afã de emagrecer o HHS e moldá-lo à sua imagem, RFK Jr. tem despedido trabalhadores indispensáveis, cancelado programas de investigação prioritários e encerrado entidades que desempenham funções cruciais, nomeadamente as agências com competências regulatórias. Por vezes, perante a indignação generalizada ou os protestos dos especialistas, o HHS tem reconhecido o erro e recuado, noutras tem persistido nele.

O desassisado mandato de RFK Jr. não tem sido marcado apenas pela precipitação, pelo atabalhoamento e pela irresponsabilidade – tem também servido para promover as suas esdrúxulas teorias sobre saúde e doença, que já eram bem conhecidas (e alvo de zombaria) antes de ser nomeado para dirigir o HHS (processo que passou pelo escrutínio e aprovação pela parte do Congresso).

Eis algumas das teorias que RFK Jr. defende:

1) As vacinas causam autismo; “não há uma única vacina que seja eficaz e segura”; “o Governo sabe-o e, todavia, autorizou, em plena consciência, que a indústria farmacêutica envenenasse toda uma geração de crianças americanas”.

Imagem de um tempo em que o Governo dos EUA estava empenhado na “diplomacia vacinal”: O primeiro lote de vacinas contra a poliomielite enviado pelos EUA chega ao aeroporto de Schiphol, em Amesterdão, em 1957

2) O HIV (o vírus responsável pela SIDA) resultou de um programa de vacinação e a alergia a amendoins tem origem análoga.

3) O sarampo pode ser combatido com canja e vitamina A, em alternativa à vacinação.

4) Os tiroteios em escolas (fenómeno mais frequente nos EUA do que em qualquer outro país) resultam do consumo de antidepressivos pelos rapazes; “antes do aparecimento do Prozac, quase não tínhamos eventos desses”.

5) A disforia de género (a não-identificação com o género biológico) pode ser causada pela presença do herbicida atrazina na água de abastecimento.

6) A adição de flúor, “um resíduo industrial”, à água de abastecimento público causa “artrite, fracturas, tumores ósseos, queda do QI, perturbações do desenvolvimento neurológico e disfunções na tiróide”.

7) “A covid-19 foi concebida para infectar [preferencialmente] caucasianos e negros. Os povos com maior imunidade são os judeus ashkenazy e os chineses”.

8) Os EUA “têm investido centenas de milhões de dólares na [produção] de micróbios que atacam selectivamente certas etnias”.

9) A pandemia de covid-19 foi empolada por Anthony Fauci (então director do CDC) e Bill Gates de forma a favorecer os fabricantes de vacinas, naquilo que RFK Jr. classificou como “um golpe de Estado histórico contra a democracia ocidental”; em alternativa à vacinação, RFK Jr advogou tratamentos com ivermectina e hidroxicloroquina, embora o efeito positivo destes fármacos não tenha sido cientificamente comprovado; estes fármacos foram também recomendados por duas outras “autoridades” médicas: Bolsonaro e Trump.

10) A radiação WiFi causa cancro e as redes 5G permitem aos governos obter informação sobre os cidadãos e controlo sobre estes.

11) O “leite cru” (raw milk), isto é, que não foi submetido a tratamento térmico (pasteurização) ou a outro processo de desinfecção, é mais saudável do que o leite correntemente comercializado. Outro dos alimentos favoritos de RFK Jr. são animais atropelados: “Toda a vida tenho colectado animais atropelados. Tenho um congelador cheio deles”.

No tempo em que o leite pasteurizado era visto como uma inovação bem-vinda: anúncio de 1930

Apêndice II: o regresso dos curandeiros

É provável que o consumo assíduo de carcaças de criaturas selvagens que não foram inspeccionadas pelos serviços veterinários esteja na origem do “verme” que RFK Jr. diz ter-se alojado no seu cérebro, há uns anos, e comido parte dele, antes de sucumbir. A ser verdade, o verme explicaria muita coisa na vida de RFK Jr.

Deve reconhecer-se que há um aspecto em que RFK Jr. e a comunidade médica estão de acordo: a ciência possui abundantes provas de que “os alimentos ultraprocessados são o motor da epidemia de obesidade”. Porém, é improvável que o director do HHS tenha capacidade, determinação e “autorização superior” para afrontar os interesses dos gigantes do sector alimentar, que têm nos alimentos ultraprocessados uma mina de ouro e em Donald Trump um fã e um aliado, e para promover a reeducação alimentar de um povo viciado, desde a mais tenra idade e há muitas gerações, em junk food. Na melhor das hipóteses, RFK Jr. será capaz de banir nos EUA alguns aditivos alimentares que já há muito foram banidos na Europa (e que impedem que muitos alimentos industriais provenientes dos EUA sejam comercializados na Europa).

Talvez RFK Jr. seja também capaz de reintroduzir a comercialização de leite cru, transportando parte da sociedade americana para os bucólicos, pitorescos e saudáveis tempos da viragem dos séculos XIX-XX, quando as doenças transmitidas pelo leite cru davam forte contributo para que as taxas de mortalidade infantil fossem 30 a 60 vezes maiores do que são hoje (o processo de pasteurização foi descoberto em 1864 por Louis Pasteur, quando tentava melhorar a salubridade no fabrico de vinho e cerveja, mas passariam várias décadas até que o seu uso se estendesse à produção de leite e se generalizasse). Embora a vacina não seja uma invenção ocidental (a “variolização” já era praticada na China do século X), foi no Ocidente que primeiro foram implementados amplos programas de vacinação, depois de em 1796, o médico britânico Edward Jenner ter efectuado os seus célebres testes de vacinação contra a varíola e de, no início do século XIX, o imperador Napoleão Bonaparte e o presidente americano Thomas Jefferson terem reconhecido os seus benefícios. Pela mesma altura, em 1806, o cantão suíço de Thurgau tornou-se na primeira região do mundo a tornar obrigatória a vacinação contra a varíola. Esta doença foi, pouco a pouco, recuando no Ocidente, mas seria necessário que a OMS lançasse em 1967 um programa de erradicação global, que terminou em 1979 com a extinção oficial da doença. É oportuno recordar que uma das primeiras medidas da Administração Trump 2.0, logo no “Dia Um”, foi retirar os EUA da OMS.

David Hume Kennerly

O exemplo vem de cima: O presidente Gerald Ford recebe a vacina contra a peste suína, administrada pelo médico da Casa Branca, 14.10.1976

Não é previsível que RFK Jr. se atreva a ordenar a suspensão dos programas de vacinação, mas a aura de descrédito que tem fomentado em torno destes irá fazer aumentar a “hesitação vacinal” e, logo, diminuir a eficácia da vacinação, já que esta requer que a percentagem de população vacinada fique acima de um patamar mínimo (ver capítulo “A Marca da Besta” em Como a matemática controla os nossos dias). A ideia de que a vacinação (do próprio ou dos seus filhos) é uma decisão estritamente pessoal é uma das grandes falácias de RFK Jr. e do movimento antivaxxer: na verdade, a vacinação é um assunto que diz respeito a toda a comunidade.

Um dos elementos da obsessiva campanha antivacinas de RFK Jr. foi a contratação, em Março passado, de David Geier para elaborar um estudo, supostamente imparcial, para o HHS, sobre a relação entre vacinação e autismo; ora, David Geier é um crente fervoroso e de longa data na teoria conspirativa que associa vacinação e autismo, tendo colaborado com o pai, o recentemente falecido Dr. Mark Geier, em estudos realizados num laboratório doméstico improvisado, que foram demolidos pela comunidade científica e cuja flagrante desonestidade intelectual levou a que Mark Geier visse revogada a sua licença para exercer medicina. Mark Geier, ao menos, tinha um diploma a seu crédito, David Geier nem isso, tendo sido processado por diagnosticar e tratar pacientes sem para tal possuir qualquer habilitação. Ao mesmo tempo que contrata charlatões para produzir “estudos” cujo resultado ele determinou à partida, RFK Jr. ameaça proibir os investigadores que trabalham para entidades estatais de publicarem os seus estudos nas revistas científicas de referência, como “The Lancet, New England Journal of Medicine, JAMA [Journal of the American Medical Association] e outras, porque são todas corruptas” e estão sob o controlo das empresas farmacêuticas, acusação que RFK Jr. estendeu às agências supervisionadas pelo HHS. Na mesma semana, no final de Maio de 2025, em que RFK Jr. fez esta ameaça, o HHS publicou o MAHA Report, um relatório sobre doenças crónicas em crianças e jovens, que (surpresa!) confirmava parcialmente as teorias favoritas de RFK Jr. e que este propagandeou como sendo um modelo de excelência científica – “o padrão-ouro”. Porém, descobriu-se que o relatório está infestado de argumentos falaciosos, enviesamentos, citações incorrectas ou deliberadamente manipuladas e referências bibliográficas inventadas ou deturpadas. A Casa Branca reagiu às críticas alegando que os erros se deveriam a “problemas de formatação” e não “contradiziam a substância do relatório, que, como sabem, é um dos mais disruptivos relatórios sobre saúde jamais divulgado pelo Governo federal e é sustentado por ciência idónea que nunca foi reconhecida pelos Governos federais [anteriores]”.

[Karoline Leavitt, secretária de imprensa da Casa Branca, criatura que está firmemente convicta de que a assertividade triunfa sempre sobre a realidade, defende o MAHA Report, 29.05.2025:]

Entretanto, em meados de Maio, RFK Jr. compareceu perante o Senado, a pretexto da discussão dos cortes na área da saúde no orçamento da Administração Trump e os Democratas aproveitaram para o questionar sobre a sua posição perante a vacinação; após se ter emaranhado em respostas incongruentes, o secretário do HHS, encurralado, acabou por tartamudear: “A minha opinião sobre vacinas é irrelevante. Não quero parecer evasivo, mas não creio que as pessoas devam seguir os meus conselhos sobre saúde”. Com efeito, RFK Jr. é das pessoas menos habilitadas do planeta para dar conselhos sobre saúde. E, todavia, o director do HHS é precisamente a figura de quem os americanos esperariam ouvir conselhos sensatos e fundamentados sobre saúde.

Próximo artigo da série: A civilização ocidental e um ambicioso plano de regressão: liberdades

NewsItem [
pubDate=2025-08-09 12:04:00.0
, url=https://observador.pt/especiais/a-civilizacao-ocidental-e-um-ambicioso-plano-de-regressao-freios-e-contrapesos/
, host=observador.pt
, wordCount=9708
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2025_08_09_1466933511_a-civilizacao-ocidental-e-um-ambicioso-plano-de-regressao-freios-e-contrapesos
, topics=[história, cultura, livros, literatura]
, sections=[vida]
, score=0.000000]