observador.pt - 9 ago. 15:11
“Mentalizei-me que ia morrer”. A história do agente baleado com cinco tiros no ataque à embaixada da Turquia
“Mentalizei-me que ia morrer”. A história do agente baleado com cinco tiros no ataque à embaixada da Turquia
Tinha 23 anos e estava de patrulha há apenas 3 dias quando teve de enfrentar um grupo de terroristas no meio da rua. O relato do agente é um dos destaques do novo Podcast Plus do Observador.
27 de julho de 1983, pouco depois das 10h30. Abílio Pereira, jovem agente da PSP em início de carreira, passava pela Avenida das Descobertas, no Restelo. Foi lá que encontrou um grupo de terroristas arménios, que o atingiram com cinco tiros à queima-roupa. Era o início do atentado à Embaixada da Turquia, um dos ataques terroristas internacionais narrados no novo Podcast Plus do Observador, “1983: Portugal à Queima-Roupa”.
De manhã, quando saiu para a patrulha, não era aquele o dia que tinha idealizado. Essa quarta-feira era apenas o seu terceiro dia de patrulha individual. Naquela altura, um jovem saído da academia de polícia tinha de passar por um mês de patrulha acompanhado por um colega com mais experiência. Aos 23 anos, Abílio já tinha cumprido esse período. Dois dias antes do ataque, na segunda-feira, estreara-se no serviço a solo à porta da esquadra de Belém. Na terça-feira, a patrulha tinha sido na Avenida da Torre de Belém. Quarta era suposto percorrer a zona da Avenida das Descobertas.
Acabou a escola da polícia com boas notas, e por isso podia ter escolhido entrar na esquadra que quisesse. Em vez de optar por uma vida mais tranquila – no mínimo ao início, para se ambientar na vida como agente – juntou-se à 4ª Divisão da Polícia de Segurança Pública. Entre as zonas da capital que iria ter de cobrir, como o Calvário, Campo de Ourique ou Belém, teria de trabalhar ativamente em alguns dos bairros que, em 1983, eram considerados os mais problemáticos de Lisboa: Casal Ventoso, Bairro 2 de Maio e Casalinho da Ajuda.
“Era o que viesse, na altura”, explica Abílio Pereira. O então jovem agente tinha família nas forças de segurança – um primo na GNR e o outro na Polícia Judiciária. Sabia no que se estava a meter. Era uma vida de aventura que procurava e foi para uma vida de aventura que se inscreveu. Na Avenida das Descobertas não é costume haver rusgas nem perseguições – naquela zona há pouco mais do que embaixadas. Não significava que na manhã daquela quarta-feira não estivesse nervoso. “No terceiro dia, a pessoa vai com medo. A farda é um incómodo. É pesada. Quando a pessoa começa a trabalhar sozinha, a farda é pesada. A pessoa começa a olhar para todos os lados. Não sabe como há de estar.”
Acordou nas camaratas da PSP na Ajuda. Para que tudo corresse bem, tinha certos rituais. “Quando saíamos da camarata, depois de nos fardarmos, passávamos pelo espelho, a ver como estávamos. Nós, quando nos fardávamos, olhávamos pelo espelho e depois íamos para a rua.” Tomou o pequeno-almoço já na esquadra de Belém, uma sandes de fiambre e um copo de leite.
[Um jovem polícia é surpreendido ao terceiro dia de trabalho: a embaixada da Turquia está sob ataque terrorista. E a primeira vítima é ele. “1983: Portugal à Queima-Roupa” é a história do ano em que dois grupos terroristas internacionais atacaram em Portugal. Um comando paramilitar tomou de assalto uma embaixada em Lisboa e esta execução sumária no Algarve abalou o Médio Oriente. É narrada pela atriz Victoria Guerra, com banda sonora original dos Linda Martini. Ouça o terceiro episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E ouça o primeiro episódio aqui e o segundo aqui]
Rendeu os colegas de turno pouco depois das sete da manhã, onde lhe passaram um rádio e um roteiro, onde consultava a ronda que teria de assegurar ao longo de seis horas. Mas Abílio vinha do norte do país, não conhecia Lisboa. Precisava de mais do que um roteiro para cumprir o seu trabalho com o brio que idealizava. Para isso, tinha uma estratégia pouco convencional: um papel e uma caneta. “Tinha um croquis, uma folha guardada, e ia pondo num bloco as embaixadas que existiam naquela Avenida. Com certos turnos para onde eu iria, fazia um croquis”, resume. Assim, sempre que lhe fizessem alguma pergunta na rua – onde era uma determinada embaixada, por exemplo – saberia responder à dúvida. Era a garantia de que conseguiria fazer a diferença junto da população, mesmo nos pormenores mais pequenos.
“Fiz uma cambalhota e um mortal”. Os momentos de aflição de Abílio Pereira, alvejado com cinco tirosVieram em dois Ford Escort: um vermelho e um branco. Quando o primeiro carro chegou ao destino, a Embaixada da Turquia, encontraram Abílio Pereira. Ele tinha reparado neles uns metros antes, mas não notou nada de estranho. Foi um carteiro que por ali estava que lhe deu o alerta, mas era tarde demais. “O carteiro apercebeu-se de algo estranho, porque um dos homens tinha uma arma atrás das costas. Disse-lhe: “Fuja”. Quando rodou para olhar para o carteiro, o homem tirou a arma detrás das costas e disparou uma rajada. “Acerta-me com um tiro no braço”.
Era apenas a primeira bala com que seria atingido. Caído no chão, ainda conseguiu ver o outro Ford Escort a chegar à embaixada e a começar a tentar derrubar o portão que dava acesso ao recinto. Atordoado, ainda tentou escapar, mas em vão: “Eu levanto-me para fugir e o mesmo elemento olha para mim, vê-me correr e faz outro disparo, em que me acerta com mais quatro tiros”.
Já depois da segunda rajada, apenas um pensamento lhe passou pela cabeça: ia morrer. “Mentalizei-me”, garante. Só lhe restava implorar. “Quando eu fico de cócoras, vem um outro que me aponta a arma à cabeça”, lembra. “Levanto o braço, peço clemência, interiormente, para não me matar.” O terrorista abanou a cabeça e afastou-se. Ainda hoje, Abílio Pereira não sabe porque é que foi poupado.
Ao todo, ficou com cinco marcas no corpo. Mas sobreviveu para contar a história e para relatar o que sentiu quando foi alvejado. “Aquilo é só um formigueiro intenso que se sente”, garante. “Aqui no braço e nas pernas. Um formigueiro intenso”. Mais de 40 anos depois, continua a recordar o ardor provocado pelos disparos e o impacto “derrubante” com que as balas o atingiram. “Eu fiz uma cambalhota e um mortal, assim todo no ar”.
Depois de ter sido alvejado, os terroristas terão considerado que tinham neutralizado essa ameaça. Aproveitou para se arrastar pelo chão até a um lancil do passeio, onde conseguiu pousar a cabeça. Não se recorda se chegou a perder os sentidos. Apenas de que as rajadas de tiros alertaram a segurança dentro da embaixada. O guarda, Túlio Rosado, saiu de arma em riste, a disparar para o ar, a gritar: “Terroristas!”
Túlio foi também uma figura central na resposta ao atentado. Tinha sido destacado de propósito para proteger o recinto, e ainda no dia antes tinha sido ele o primeiro a perceber que algo poderia estar para acontecer. Estava de serviço quando um dos Ford Escort passou pela embaixada. Um homem saiu do veículo, com um dos braços escondido por dentro do casaco, e disse que vinha visar o passaporte. Assim que foi abordado deu meia-volta, e foi-se embora. O guarda estranhou a situação e avisou as chefias. Disseram-lhe apenas que permanecesse atento.
Depois da reação de Túlio Rosado, também um segurança turco decidiu enfrentar os autores do atentado. Saindo rapidamente de dentro do edifício principal, conseguiu abater o homem que alvejou Abílio Pereira.
Dos cinco que ali tinham chegado, restavam quatro. Voltaram a um dos carros e finalmente conseguiram derrubar o portão. Estavam obrigados a mudar de plano, tinham atraído demasiadas atenções. Em vez de entrarem dentro da chancelaria, onde decorrem os trabalhos da embaixada, invadiram a casa ao lado, onde vivia o embaixador. O diplomata não estava em Portugal, e por isso quem ocupava a casa era a família do encarregado de negócios. Apenas a mulher e o filho do embaixador turco estavam por lá, e foram tomados como reféns.
Mas nessa altura, o agente Abílio Pereira tinha outras preocupações. Estava a lutar pela vida, deitado no meio da estrada. Ninguém o veio acudir. Às dez da manhã de uma quarta-feira, em julho, pleno verão, as poucas pessoas que por ali viviam ou estavam no trabalho ou estavam de férias. E mesmo quem o visse, no estado em que se encontrava, só podia considerar que estava um cadáver no meio da rua. Esse pormenor acabou por ser crucial, lembra: “A primeira comunicação foi dada porque eu estava estendido no chão. Há um carro que passa e vai comunicar à esquadra que estava um polícia morto na estrada”.
Poucos minutos depois, teve sorte. Uma ambulância passava pela Avenida das Descobertas, a caminho do hospital, sem saber do que se passava na embaixada. Reparando no agente, parou para socorrer Abílio. Dali, levou-o para as urgências do Hospital de São José.
Por lá ficou durante cerca de 30 dias, e foi já na cama de hospital que soube dos desenvolvimentos do ataque à embaixada, que resultou em várias mortes e na destruição da casa onde os terroristas se inseriram. Passado 40 anos, considera que teve uma ação crucial em tudo o que aconteceu. “Se não sou eu a levar os tiros, morria toda a gente. Ninguém se safava. Se não fosse o alerta do carteiro, os tiros cá fora, a introdução deles na própria residência… Se eles quisessem, ia tudo.”
Abílio Pereira nem chegou a ser operado aos ferimentos. Apenas uma das balas ficou no corpo, e nenhuma atingiu órgãos vitais. Apesar de ter ficado atordoado, a dor não o deixou em agonia. Aliás, hoje garante que não sentiu dor nenhuma. Foi tratado com éter, e isso bastou para se curar.
A experiência marcou-o a nível profissional, mas nunca pensou entregar o distintivo. Nunca quis desistir. Não só continuou a carreira na PSP como continuou a trabalhar nos bairros problemáticos onde a 4ª Divisão se inseria. Passado um mês hospitalizado, em que recebeu várias visitas dos colegas, voltou ao trabalho, e foi logo para o terreno. Não lhe foi prestado qualquer apoio psicológico: “Nessa altura, não havia nada. Vais trabalhar e mais nada. Isso é impressão tua. Isso passa-se na cabeça. Isso passa. Isso não é nada. Antigamente não é como é agora. Completamente diferente.”
As exigências do grupo de arménios e a lembrança de um outro ataque em solo portuguêsQuando chegaram os primeiros reforços à embaixada, Abílio Pereira já lá não estava. Pouco tempo depois de ter sido retirado, a imprensa e o país ficavam a conhecer os autores do atentado: o Exército Revolucionário Arménio. Tratava-se de um dos grupos paramilitares mais mortíferos da segunda metade do século XX.
A reivindicação chegou ainda naquela manhã, à sede do Diário de Notícias. No jornal, entregaram uma carta escrita em inglês onde os terroristas se apresentavam e diziam ao que vinham:
“Recusamos qualquer forma de interferência policial. Pedimos que a Polícia se abstenha nas próximas 48 horas do seguinte:
– Estacionamento de agentes ou soldados que visem o isolamento do local;
– Utilização de saídas de incêndio, acesso ao telhado ou caves, de modo a introduzirem-se na área de operações;
– Estacionamento de atiradores nos telhados dos edifícios em redor;
– Organização de grupos de assalto.
Uma ação de tal ordem resultará sem dúvida em baixas entre a Polícia e os reféns. Recusamo-nos a comunicar com a polícia, porque não somos criminosos. Somos revolucionários. O nosso objetivo é a defesa dos legítimos direitos do povo arménio.
O Exército Revolucionário Arménio.”
12 dias antes do atentado no Restelo, o grupo tinha reivindicado um massacre no aeroporto de Paris. Uma mala armadilhada explodiu num balcão de check-in da Turkish Airlines. Oito pessoas morreram, 55 ficaram feridas. Foi um dos ataques mais mortíferos, mas ao longo das décadas de 70 e 80, os arménios foram responsáveis por centenas de atentados um pouco por todo o mundo. Queriam que o Governo turco reconhecesse a existência do genocídio do povo arménio no início do século, antes da I Guerra Mundial. Ainda hoje, a Turquia não aceita fazê-lo.
Um desses muitos ataques aconteceu em Portugal exatamente um ano antes e ainda estava bem presente na memória. A 7 de Junho de 1982, um diplomata turco e a mulher estavam a estacionar o carro, à porta de casa, em Linda-a-Velha. Foram abordados por um homem misterioso, de chapéu e luvas pretas. A janela estava aberta, o que permitiu que o terrorista alvejasse o diplomata quatro vezes. Tinha uma pistola em cada mão, e não deixou que a mulher escapasse. Ela ainda tentou fugir, mas o atirador atingiu-a, já ao longe, na cabeça.
O homem nunca foi apanhado, mas o ataque foi também reivindicado pelo Exército Revolucionário Arménio. A mulher ainda se manteve em coma no hospital durante várias semanas, mas acabou por morrer.
O atentado obrigou ao reforço das medidas de segurança para todo o pessoal diplomático turco em Lisboa e para o edifício da embaixada. Por isso, quando o grupo de cinco terroristas chegou, pouco mais de um ano depois, ninguém estava à espera, mas também ninguém se pôde dizer surpreendido. Nada disso impediu contudo um dos ataques mais marcantes em solo português, um dos únicos levado a cabo por um grupo terrorista internacional.
Estreia. “1983: Portugal à Queima-Roupa”. Episódio 1: Um corpo no lobby do hotel
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