Observador - 10 ago. 00:03
A lenda do cavaleiro decapitado pela promiscuidade
A lenda do cavaleiro decapitado pela promiscuidade
O assassino escolheu destruir. E depois, numa inversão grotesca da contrição, procurou o hospital, entregando a cabeça, como prova e relíquia do vazio. O mal não veio de uma mente delirante.
Na planície enevoada da modernidade, surge a silhueta espectral de um cavaleiro errante. Não tem cabeça, mas cavalga impetuosamente cego, surdo à razão e guiado por instintos que brotam do ventre e não do espírito. Monta um cavalo negro e relinchante, e o seu galope soa a batidas de um coração ansioso, viciado na busca por algo que já não se sabe nomear.
Este é o Cavaleiro sem cabeça, símbolo último da alma contemporânea e que cavalga por aplicativos, bares, festas e esquinas digitais, onde os corpos se oferecem como mercadorias e identidades que se desfazem ao toque de uma tela.
A cabeça foi-lhe cortada pelo culto moderno do prazer imediato. Lá onde antes residia o logos, a consciência, a prudência e o desejo de transcendência amorosa, há agora apenas o vazio. Os olhos que um dia buscaram o rosto do outro, hoje foram substituídos por algoritmos que deslizam para a esquerda ou para a direita. O amor, esse cavalo selvagem que se domava pela paciência e pela verdade, agora reduz-se à anatomia, ao “tipo”, à pose.
O primeiro encontro, outrora um ritual que anunciava a possibilidade de uma comunhão entre dois destinos, tornou-se agora numa performance fugaz em que duas máscaras se tocam e mentem mutuamente em nome de uma autenticidade fingida. A intimidade dá-se antes do conhecimento; numa casa começada pelo telhado onde o corpo se entrega sem que a alma jamais queira habitar.
Nesta decadência promíscua, não apenas os encontros heterossexuais se desfiguram, os encontros homoeróticos, amplamente promovidos sob o estandarte da “libertação”, muitas vezes caem em terrenos ainda mais vulneráveis à lógica do consumo.
A tradição, mesmo nos seus limites, reconhecia o eros como força ordenadora, como uma escada para o transcendente. A modernidade reduziu-o a impulso, a uma pulsão biológica e, numa cisma do instante, o cavaleiro perdeu a cabeça porque recusou o domínio da razão e a beleza da espera.
Lisboa acordou, no fim de julho, com um dos crimes mais chocantes da sua história recente: um corpo decapitado, abandonado em plena Baixa, como um esboço de tragédia grega em versão pós-moderna. Dias depois, a cabeça foi entregue num hospital, quase como um gesto sacrificial, ou como uma súbita consciência do absurdo.
Não se tratou de um surto, nem de uma alienação mental, apontam, até agora, os peritos. Tratou-se de uma escolha crua, livre e, precisamente por isso, abismal. É nesse ponto que o filósofo Kierkegaard nos assombra: “A angústia é a possibilidade da liberdade.” O assassino escolheu destruir. E depois, numa inversão grotesca da contrição, procurou o hospital, entregando a cabeça, como prova e relíquia do vazio.
E então surge o rosto mais inquietante desta história: o da normalidade. O acusado, dizem as autoridades, não tinha registo de perturbações graves. Entregou-se com calma e cooperante. O mal não veio de uma mente delirante, mas de um indivíduo que foi capaz de calcular, decapitar e, ainda assim, agir socialmente após o crime.
O Rossio, onde antes se queimavam heréticos e se julgavam crimes com pompa inquisitorial, é hoje cenário de um crime sem ideologia, sem crença e sem explicação. Um crime com pés sem cabeça.
Como o Cavaleiro sem cabeça que vagueia em busca de algo perdido, este acto macabro simboliza o homem moderno que já perdeu a cabeça; a razão, a compaixão, o sentido do outro. A decapitação é a separação literal do pensamento e do vínculo humano: uma vida sem reflexão, uma atracção sem empatia.