observador.pt - 9 ago. 18:20
Burroughs em Locarno (com escala em Guimarães)
Burroughs em Locarno (com escala em Guimarães)
Admirável viagem no tempo, “Nova'78”, de Aaron Brookner e Rodrigo Areias, é um filme de arquivos focado na Nova Convention que homenageou William S. Burroughs em Nova Iorque.
Entre 30 de Novembro e 2 de Dezembro de 1978, o Entermedia Theatre de East Village, em Nova Iorque, acolheu uma espécie de festival em homenagem a William S. Burroughs (1914-1997), figura maior da Beat Generation e da literatura americana da segunda metade do século XX. Concebido por James Grauerholz, John Giorno, Sylvère Lotringer e intitulado Nova Convention, o evento de três dias reuniu pensadores e artistas avant-garde de várias áreas, influenciados pelo escritor que então contava 64 anos. Burroughs foi o astro em torno do qual gravitou tudo o que é visto e ouvido em Nova’78.
Concertos, palestras, performances, leituras de poesia. Por aquele palco passaram, entre outros, Laurie Anderson e Anne Waldman, Merce Cunningham e John Cage (companheiros na vida), Philip Glass, Ed Sanders, Patti Smith, Frank Zappa, Lenny Kaye ou Allen Ginsberg. Cada um deles trouxe um “presente” para Burroughs, um espectáculo único, intransmissível e irrepetível. São todos notáveis, sem excepção.
Howard Brookner (1954-1989), que mais tarde realizaria um filme incontornável sobre a figura em causa (Burroughs: The Movie, 1983), estava a estudar na Universidade de Nova Iorque quando decidiu, por devoção à “criatura”, filmar em película 16mm, num registo em tudo amador (e impraticável para os cânones da televisão da época) o que se passou naqueles três dias de 1978, secundado por colegas e amigos da NYU. Jim Jarmusch, então um ilustre desconhecido, ajudou-o a gravar o som (aparece no filme a bater umas claquetes).
Dado como perdido ao longo de décadas, esse material foi recentemente encontrado no “bunker” de Burroughs em Nova Iorque (o célebre ex-balneário do hotel YMCA na Bowery Street em que o escritor viveu mais de vinte anos, até ao fim da vida). Aaron Brookner, sobrinho de Howard e também cineasta, teve então acesso à raridade. Imagem e som encontravam-se em departamentos separados, entre pilhas de latas de película e de bobines de fita magnética.
Aaron Brookner deu-se conta de que precisava de um parceiro em co-autoria para organizar, repensar e montar o que lhe tinha ido para às mãos. Em 2022, convidou então Rodrigo Areias, que ele conhecia de parcerias de produção. Foi deste modo que uma boa parte deste material histórico da Nova Iorque de 70s acabou por ser sincronizado pela primeira vez em Guimarães, nos estúdios da produtora Bando à Parte.
Quando Locarno anunciou a programação deste ano, Rodrigo contou que o lema de Nova’78 foi “deixar falar os arquivos”, sem acrescentar comentários e oráculos. “Resistimos à tentação de entrevistar uma série de pessoas que ainda estão vivas como a Patti Smith ou a Laurie Anderson. Por muito boas que essas entrevistas fossem, iriam diminuir a intensidade que os arquivos têm.” E é o que acontece com esta cápsula de tempo, documentário que, em boa verdade, só existe por causa dos caprichos do destino.
Nova’78, de facto, não precisa de imagens de hoje. E acima de tudo, não é um filme de museu, preso ao passado. Muito do que é dito por Burroughs contra a América conservadora do final dos 70s poderia ser dito e impresso hoje, com a mesma relevância e actualidade.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia