sol.sapo.pt - 9 ago. 13:00
Gaza entre o reconhecimento e o novo plano de Netanyahu
Gaza entre o reconhecimento e o novo plano de Netanyahu
Enquanto várias grandes potências ocidentais comunicam que reconhecerão o Estado da Palestina em setembro na ONU, os desenvolvimentos recentes mostram que as suas condições dificilmente serão atendidas.
Uma solução para o conflito em Gaza parece não estar à vista. Independentemente dos esforços diplomáticos e de uma forte mobilização da opinião pública internacional, as partes envolvidas – Hamas e Israel – mostram-se irredutíveis quanto às suas exigências e a solução dos dois Estados, nestes moldes, afigura-se pouco exequível.
Apesar das inúmeras investidas israelitas desde o fatídico 7 de outubro de 2023 para erradicar o Hamas – eliminando nomes de topo e enfraquecendo o seu financiador principal – o grupo terrorista que controla a Faixa de Gaza desde 2007 continua a oferecer resistência e ainda tem detidos reféns israelitas.
O objetivo do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, é bem conhecido e ficou claro desde o início: acabar com o Hamas e recuperar todos os reféns. Por isto, e porque o grupo palestiniano não deu, naturalmente, sinais de compromisso, Israel foi intensificando as suas operações e, através de alguns acordos de cessar-fogo frágeis que rapidamente chegaram ao fim, conseguiu recuperar vários reféns – vivos e mortos.
Entretanto, e enquanto não há uma trégua definitiva, a situação humanitária em Gaza deteriora-se a cada dia. A ajuda que chega às portas do enclave tem sido o principal tema quando se discute o conflito, com alguns a culparem Israel e outros o Hamas pela escassez de mantimentos básicos na Faixa de Gaza. Mas é precisamente esta crise humanitária e a crítica generalizada da comunidade internacional à conduta israelita que tem feito com que os grandes aliados de Israel, as democracias ocidentais, tenham começado a perder confiança no Estado judaico e tomar medidas, ainda que apenas diplomáticas, nesse sentido.
Uma delas é o reconhecimento de um Estado palestiniano. A questão não é, de todo, nova, e a solução dos dois Estados foi sempre amplamente vista como a única solução para lograr a paz numa região cuja história – principalmente desde a criação do Estado de Israel em 1948 – é uma história de guerra, marcada por alguns interregnos de paz relativa.
O reconhecimento
Por isto, a questão que hoje se levanta já não é se deve ser reconhecido o Estado da Palestina, mas sim ‘como reconhecê-lo?’. E se o afastamento de várias potências ocidentais fica cristalizado com este apelo – sobretudo por parte da França, do Canadá e do Reino Unido -, as condições colocadas por estas últimas deixam claro que a abordagem deverá ser pautada por um certo nível de prudência, ainda que a capacidade para as atingir pareça reduzida.
Antes de analisar o conteúdo das propostas, importa notar que uma série de Estados-membros da União Europeia já reconheceram o Estado da Palestina. A Polónia, a Hungria, a Roménia, a Bulgária e Chipre reconheceram logo em 1988, a Eslováquia em 1993, a Suécia em 2014 e, por fim, em 2024, a Eslovénia, a Irlanda e a Espanha.
Das três grandes potências ocidentais que ainda não reconheceram o Estado da Palestina, foi a França que deu o primeiro passo. No passado dia 24 de julho, de acordo com a informação publicada pelo website da diplomacia francesa, «o cônsul-geral da França em Jerusalém entregou uma carta do presidente francês Emmanuel Macron ao presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, em resposta à carta de Abbas de 9 de julho». Assim, e «[e]m consonância com o seu compromisso histórico com uma paz justa e duradoura no Médio Oriente, a França reconhecerá o Estado da Palestina em setembro deste ano». O objetivo, pode ler-se no documento francês, prende-se com o compromisso francês quanto à «solução de dois Estados, com Israel e a Palestina a viverem lado a lado em paz e segurança», uma vez que se trata do «único caminho que pode responder às aspirações legítimas tanto dos israelitas como dos palestinianos e estabelecer uma paz duradoura no Médio Oriente».
Mas a exequibilidade deste reconhecimento depende de fatores que não estão, de todo, garantidos. Isto porque a declaração francesa baseia-se na Autoridade Palestiniana – que controla alguns territórios na Cisjordânia -, cuja relevância se afigura cada vez menor. A França «[r]econhece e saúda os compromissos corajosos assumidos pela Autoridade Palestiniana, que se manifestou fortemente a favor da solução de dois Estados e da paz, condenou veementemente os ataques terroristas perpetrados pelo Hamas a 7 de outubro, apelou à libertação dos reféns, ao desarmamento do Hamas e à sua exclusão da governação de Gaza, comprometeu-se a combater o discurso de ódio e a radicalização e a reformular a sua governação – compromissos pelos quais a responsabilizaremos. Ao conceder este reconhecimento, a França reconhece os atores palestinianos que escolheram o diálogo e a paz em detrimento de outros, como o Hamas, em particular, que escolheram a guerra e o terrorismo».
Também o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, anunciou que o Reino Unido iria reconhecer o Estado da Palestina em setembro, numa proposta que apresenta mais ou menos os mesmos moldes que a francesa. Existe apenas uma diferença: o comunicado de Starmer, ao contrário do de Macron, veio com selo de ultimato. «Como parte deste processo rumo à paz», disse o chefe do executivo britânico, «posso confirmar que o Reino Unido reconhecerá o Estado da Palestina pela Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro, a menos que o governo israelita tome medidas substanciais para pôr fim à terrível situação em Gaza». Esta diferença, que pode parecer, à primeira vista, ligeira, não deixa de ser relevante. Porque este reconhecimento condicional – algo que o francês também é – revela ser mais uma pressão diplomática a Israel do que uma vontade inabalável de apoiar um Estado palestiniano. O que não significa que a proposta francesa não o seja, mas Starmer deixou-o mais claro que Macron.
O Canadá, terceiro país do G7 a embarcar na iniciativa lançada pelos franceses, foi mais longe nas exigências. O primeiro-ministro Mark Carney garantiu, de acordo com a BBC, que tal reconhecimento só será concretizado caso se proceda a um conjunto de reformas democráticas, nas quais se inclui a realização de eleições no próximo ano sem a presença do Hamas.
De forma resumida, e apesar de algumas diferenças nas propostas, o plano das três potências ocidentais passa essencialmente pela tomada de Gaza pela Autoridade Palestiniana, pelo desarmamento e exclusão do Hamas, reconhecido como um grupo terrorista, do enclave. Contudo, nenhuma das três nações aborda a questão que inevitavelmente se levanta: sendo que a proposta dá a entender que é possível desarmar e excluir o Hamas da Faixa de Gaza – algo que não é, de todo, um dado adquirido -, como será realizado esse processo, visto que, como todos reconhecem, se trata de uma organização terrorista? É uma pergunta que, de momento, ficará em aberto.
A relevância da ONU
Sendo que estas propostas se formalizam e se empreendem no seio da ONU, a sucessora da falhada Liga das Nações é, assim, um organismo que merece ser mencionado quando a questão é o conflito em Gaza. Desde o início que o seu secretário-geral, António Guterres, tem apelado a uma solução de dois Estados. As posições contra Israel vindas de Nova Iorque desde o 7 de outubro têm-se intensificado à medida que Telavive intensifica a sua conduta no enclave – uma abordagem que tem sido merecedora tanto de aplausos quanto de críticas.
Mas a reputação, e relevância, das Nações Unidas tem sido colocada em causa. Isto porque tem sido acusada de parcialidade no que diz respeito a este conflito, vendo-se envolvida em alguns escândalos como o da UNRWA (Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Próximo) e porque, cada vez mais, se apresenta como uma instituição incapaz de cumprir o seu propósito fundamental: o de ser uma instituição dotada de poder e peso diplomático resolver conflitos.
Os desenvolvimentos recentes deixam esta perda de relevância cada vez mais clara. Todas as manobras diplomáticas para tentar colocar um ponto final no conflito têm sido levadas a cabo principalmente pelos Estados Unidos, o mais antigo e importante aliado de Israel, que acaba por marginalizar outros players como as potências ocidentais e a própria ONU, até porque as negociações são feitas principalmente através de intermediários da região, dos quais se destaca o Catar. E mesmo os beligerantes – Israel e Hamas – parecem mostrar indiferença face aos apelos e recomendações que lhes chegam de Nova Iorque.
A visita de Witkoff e o plano de Netanyahu
Os eventos da última semana são um exemplo paradigmático disso mesmo. Enquanto a França, o Canadá, o Reino Unido e outras democracias ocidentais tentam junto da ONU reconhecer o Estado da Palestina, Steve Witkoff, o enviado especial do Presidente norte-americano Donald Trump, deslocou-se mais uma vez ao Médio Oriente – desta vez para visitar os locais onde se encontram as provisões humanitárias e para avaliar a possibilidade de os Estados Unidos serem os principais prestadores de ajuda deste tipo. Algo que terá sido pedido por Trump, que alegadamente ficou chocado com as imagens que viu da situação de fome que se alastra pelo enclave. Ainda que não esteja «entusiasmado» com a ideia de serem os EUA a assumir as rédeas da ajuda humanitária, o líder da Casa Branca reconhece, segundo um funcionário americano citado pela Axios, que «isso tem de acontecer» porque «[n]ão parece haver outra maneira».
Mas a visita de Witkoff não se ficou, naturalmente, pela questão da ajuda humanitária. Foram levados a cabo esforços para se conseguir desbloquear um novo acordo de cessar-fogo e, de acordo com uma notícia da Al Jazeera, «o jornal israelita Haaretz noticiou que o enviado dos EUA disse às famílias que o Hamas se declarou ‘disposto a ser desmilitarizado’». Isto seria, certamente, um passo fundamental para se conseguir desenvolver um processo de paz sólido para o ‘dia seguinte’. Mas, e como seria de esperar, o Hamas negou as alegações. Num comunicado, citado pela Al Jazeera, o grupo terrorista disse que «a resistência e as suas armas são um direito nacional e legal enquanto a ocupação [israelita] persistir», sendo que esse direito «não pode ser renunciado até que os nossos direitos nacionais sejam totalmente restaurados, entre os quais se destaca a criação de um Estado palestiniano totalmente soberano e independente, com Jerusalém como capital».
Após a visita de Witkoff à região – que demonstra a perda de relevância da ONU não só no processo de paz como também na questão da ajuda humanitária -, Netanyahu lançou um plano que aprofunda o conflito e que confirma os receios de alguns oficiais americanos. O plano vem na sequência da divulgação de um vídeo do Hamas onde mostra um refém israelita a cavar a sua própria sepultura – imagens chocantes que teriam como objetivo pressionar Israel. Porém, o objetivo parece não ter sido atingido. Pelo contrário.
De acordo com o jornal israelita The Times of Israel, «Israel deveria aprovar na quinta-feira um plano faseado para tomar o controlo de vastas novas áreas da Faixa de Gaza, potencialmente ao longo de cinco meses, deslocando novamente cerca de um milhão de palestinianos e apesar dos avisos de altos oficiais militares de que isso colocaria em risco a vida dos reféns mantidos nessas áreas, de acordo com várias reportagens dos media hebraicos na quarta-feira».
«O plano visa destruir o que resta do grupo terrorista Hamas», continua a notícia do jornal israelita, «e pressioná-lo a libertar os 50 reféns que ainda mantém em cativeiro, cerca de 20 dos quais ainda vivos, após o fracasso das recentes negociações para um acordo. O plano começaria com a tomada da cidade de Gaza, no norte da Faixa, e dos campos na parte central da Faixa, levando cerca de metade da população do enclave para o sul, em direção à zona humanitária de Mawasi».
Independentemente de se tratar de um plano ao qual Trump não se opõe, e para além de ir contra o pretendido pela comunidade internacional, esta nova investida sobre Gaza está a ser motivo de fricção dentro das próprias instituições israelitas. O Chefe de Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel (FDI), Eyal Zamir, é um exemplo. As declarações de Zamir numa reunião à porta fechada, apresentadas pelo The Times of Israel que, por sua vez, citou o Canal 12, deixam clara a sua oposição ao pretendido pelo executivo: «Ocupar a Faixa de Gaza arrastaria Israel para um buraco negro – assumir a responsabilidade por dois milhões de palestinianos, exigir uma operação de limpeza que duraria anos, expor soldados à guerra de guerrilha e, o mais perigoso, colocar os reféns em risco».
Assim, a não rendição do Hamas e a intransigência de Netanyahu – que provavelmente conduzirá a mais uma invasão da Faixa de Gaza – parecem deixar pouco espaço para a realização dos apelos e propostas da ONU, da França, do Reino Unido, do Canadá e de outros tantos estados que acompanham e subscrevem estes esforços de reconhecimento do Estado da Palestina. Por tudo isto, e independentemente das boas intenções diplomáticas de boa parte da comunidade internacional, o futuro próximo na região não se afigura risonho e, entretanto, a crise humanitária continua a agravar-se.