observador.ptObservador - 10 ago. 00:11

A mudança movida a rotundas e macadame

A mudança movida a rotundas e macadame

Se se admitir que as legislações legislativas foram um terramoto, que dizer do futuro que nos espera? Parecem esquecidas as próximas eleições: dia 12 de outubro.

Os tempos em que vivemos são tempos de excessos. Na verdade, talvez todos os tempos sejam de excessos. O LSD e a libertação sexual nos 70s, o consumo e Wall Street nos 80s, os media (agora tradicionais) e o pop nos 90s, o crédito e a reality tv nos 00s, os unicórnios (empresas, entenda-se) e as redes sociais nos 10s, e provavelmente o pós-verdade e a inteligência artificial nos 20s.

Com o crescente de ruído, também os canais de divulgação se ajustaram ao volume, adaptando e capitalizando a vozearia. As notícias têm de ser bombásticas, os eventos catastróficos, as personagens nunca antes vistas, e as tendências cataclísmicas, ou de outro modo ninguém clica nem ninguém ouve. Trump é um bom exemplo deste exagero, ele que é, na boa tradição americana, sempre o melhor e/ou maior e/ou primeiro.

Na televisão, seguem-se em filas intermináveis os comentadores e especialistas da especialidade, variando entre peritos de temas micro e entendidos de largo espectro.

No domingo dia 18 de maio – foi há menos de três meses, mas já parecem séculos -, como habitualmente nas nossas agora quase tradicionais eleições legislativas anuais, as análises foram detalhadas e profundas em painéis de especialistas interessados e participantes da eleição, num misto de opinião e defesa/ataque dos seus.

Fora as habituais opiniões de margem, mais pitorescas e esdrúxulas, houve um consenso no terramoto ou evento marcante que foi esta eleição.

Para um cínico encartado, esta eleição foi uma eleição como outras, com apenas algumas curiosidades.

Foi uma eleição sem incidentes. Ainda sou do tempo em que os boicotes eram frequentes. O fecho de um centro de saúde, da repartição das Finanças, a falta de alcatroamento de uma estrada ou o atraso na construção de uma escola eram motivo para um boicote – por vezes imposto por certos votantes aos seus concidadãos, pela coação e pelo argumento do pau. Agora já nem boicotes nem reportagens em direto do local há.

Foi ainda uma eleição onde a direita foi maioritária. Tal não é frequente num país que vive da caridade e da mendicidade dos pobres, dos remediados e dos ricos, face a um Estado pesado e paternal que decide quem é merecedor de uma sinecura ou de um desafogo financeiro. Mas também a direita já tinha sido maioritária nas legislativas de 2024…

Foi uma eleição onde os dois principais partidos nacionais quebraram a tradição de trocarem entre si o primeiro e segundo lugar no pódio legislativo. E realmente tal poderá ser relevante. No entanto, pelos totais de deputados distribuídos por partido, não é certo que as dinâmicas parlamentares mudem profundamente – ficando apenas como mudança relevante a distribuição pontual de alguns apelidados de “tachos”, em estruturas do Estado, ou lugares de prestígio (como no Conselho de Estado), que mesmo sendo muito cobiçados em círculos de soberba e influências, o cidadão comum neles não teria qualquer interesse.

Como diria César das Neves, parece que ficou tudo “Exatamente como antes: um Governo minoritário que gerirá diariamente a realidade, desafiando quotidianamente a Oposição a derrubá-lo”, apesar dos relatos de abalos em toda a litosfera. Se se admitir que as legislações legislativas foram um terramoto, que dizer do futuro que nos espera?

Nestes dias que correm, andamos todos inebriados com a lista infindável de candidatos presidenciais, sondagens sobre estes, plataformas eleitorais, pequenas e grandes traições, e expectativa de quem ainda pode entrar na corrida, seja um ex-autarca, ex-candidato, ex-governador, ou outro qualquer ex-suposto-independente. Fora os típicos cartazes coloridos e a sua correspondente poluição visual, e o Governo, que com uma jogada costista vai distribuir benefícios anuais nos meses de agosto e setembro, parecem esquecidas as próximas eleições.

Dia 12 de outubro.

A próximas eleições autárquicas decorrerão logo ali depois da volta à escola, após o Verão. Ainda alguns de nós estaremos a arrumar as toalhas de praia. Vão chegar num instante, e quando dermos por elas, o país pode ter mesmo materializado a mudança profunda que se tem vindo a acumular veladamente nos últimos (pelo menos) 10 anos.

A diferença entre 12 ou 50, ou entre 50 ou 60 deputados na Assembleia da República pode até nem ser verdadeiramente material uma vez que o tempo de antena, na tribuna, ou nas notícias não difere significativamente quando o que se procura é simplesmente o que é diferente e chocante.

No entanto, o acesso ao poder autárquico permite aos partidos controlar máquinas de distribuição de benefícios, de propaganda, de combate político, e acesso a recursos potenciadores da posição dominante. Quem não conhece o uso abusivo de camionetas camarárias para transporte de cidadãos para fins diversos dos originais, os arraiais de Verão com cantores da moda, as rotundas, o macadame de último ano de mandato, os manuais escolares gratuitos ou tantos outros? O poder autárquico é uma máquina de perpetuação do poder, e de amplificação da influência.

O microcosmo autárquico é ainda o ambiente onde a abordagem “rouba-mas-faz”, ou as suas variações, mais se sente. A tolerância nacional para com candidatos sobre os quais em eleições legislativas impendem dúvidas de conduta é elevada – e nem vale a pena fazer lista. Mas essa tolerância é ainda maior num ambiente onde o cacique é símbolo do apoio da população, nem que seja por viciação de concursos em benefício dos filhos da terra, ou pela potencial obtenção de um “trabalho na câmara”.

Se se tiver em conta os resultados das últimas eleições legislativas poder-se-á observar que o segundo partido com mais deputados foi o partido mais votado em 60 municípios. E se se tiver também em consideração que o máximo que o CDS-PP obteve de implementação autárquica foi de cerca de 30 autarquias, a CDU 56 (em 1979 e atualmente com 19), e que o Bloco de Esquerda nunca alcançou a vitória numa autarquia, aí sim, poderemos analisar o grau do abalo que se aproxima e das réplicas que se lhe seguirão.

Como diria o general romano a deambular na seara, “o que um homem faz ecoa na eternidade”, e o voto em outubro poderá ter uma repercussão bem imediata, mas também sentida por geraç��es.

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