observador.ptObservador - 10 ago. 00:05

Se o Renato é autista, o que é o mundo?

Se o Renato é autista, o que é o mundo?

Vi a minha filha de 2 anos estender um balde com água a um menino perseguido por outros. Era autista. Esta é a história verídica que me fez acreditar na força do amor e no absurdo da exclusão.

Conheci um menino de cinco anos que a minha filha de dois adorou. Ele andava a correr pelo parque e os outros meninos iam atrás dele como num frenético jogo do rato e do gato. Contudo, desta vez, em causa não estava nenhum tipo de  brincadeira: perseguiam o tal rapaz, atirando-lhe, violentamente, gritos e pedras às costas em zigue-zague de apuro sem socorro. Nos primeiros segundos, julguei que o fizessem por ser negro, o que me deixou logo alerta. De imediato percebi que  não era exatamente por isso. Havia uma motivação diferente, ainda que tão má ou pior.

Era um grupo de quatro ou cinco crianças ligeiramente mais velhas do que o rapaz-fugitivo, apesar de fisicamente mais pequenas do que ele. Quem começou o quê foi algo que não reparei, já que, até me aperceber da “perseguição”, estava a  brincar na relva com a Madalena, a minha filha, que punha água numa poça, tirada de um balde. O rapaz, de pés trocados e pulmões na boca, aproximou-se de nós, olhou para a Madalena e, sem mais, sentou-se ao lado dela num rasgo de quem encontra o que procura. Eu olhei para os rapazes perseguidores com ar de mauzão e, quando ia dizer-lhes algo, fugiram atirando ao ar “não voltes, atrasado!”.

Olhei para o miúdo perseguido, agora ao pé de nós, e reparei que ele, para além de completamente sujo de terra, tinha o braço repleto de arranhões que ainda perdiam sangue. Perguntei-lhe se queria ajuda e se os pais estavam por ali, logo depois de a Madalena lhe ter oferecido, por instinto, o tal balde com água: talvez ela tenha também notado o mau estado do rapaz, que, estranhamente, não chorava sequer. Aliás, não mostrava quaisquer emoções próprias de uma situação daquelas. Perante o silêncio e apatia do menino, que imputei ao susto provocado pelas outras crianças idiotas, renovei a tentativa de comunicação: “Como te  chamas?” E, de pergunta ainda em arco de interrogação preocupada, surgia, a correr, de uma ponta do parque, uma mulher que, chegada, não reparara em mim nem na Madalena e implorava: “Renato, não podes fazer isso! As pessoas assustam-se contigo e tratam-te mal! Nunca mais faças isso, por favor!” Renato era o nome do miúdo magoado e perseguido pelos outros miúdos que tinham, depois, voltado para o escorrega em grupo, felizes e contentes entre si. Eu perturbava-me cada vez mais com tudo aquilo e a Madalena continuava a tentar que o menino aceitasse, de uma vez, a água sempre recusada.

“O Renato não fala. É autista com um espectro muito alto! Desculpem, vamos deixar-vos em paz. Desculpem!” Eu fiquei meio atrapalhado, sem palavras, a  mulher procurava, apressadamente, levantá-lo mas, nesse preciso momento, o menino, quase por milagre, decidiu aceitar o balde da Madalena. Fixou o rosto dela e estava completamente sereno enquanto a sujidade da terra se lhe fugia da pele entre a água finalmente aceite. Parecia em paz, protegido e calmo, a lavar-se de um mundo estranho e violento. Durante uns minutos, brincou com pedrinhas no chão, enquanto a mulher lhe limpava a ferida do braço e me respondia a questões que qualquer humano-humanizado tem de fazer naquelas inesperadas circunstâncias: Ele vai à escola? Como corre por lá? Para os pais, como é?  Alguém ajuda? E outras questões que a agora-senhora, e já não mulher apenas, me respondia entre esgares de sorrisos que na verdade são choros eternos disfarçados.

A senhora terminou as explicações dizendo que o Renato ia começar a escola, em Setembro, sem ensino especial, em conjunto com os meninos  “normais”, precisamente aqueles que o perseguiam há minutos. Estava assustada  e achava que tudo podia correr mal. Eles ofendiam-no muito, agrediam-no muito e usavam-no como se fosse um objeto de carne silencioso. O Renato era tudo para a senhora enquanto tudo, à volta deles, só os dois sempre, era violento com o Renato. As lágrimas vinham-me aos olhos quando a senhora, talvez pela minha  impotente vergonha na humanidade, decidiu cessar o seu pranto e dizer, convicta:  “Mas tu és forte, não és Renato?” E o Renato, que não respondeu nem pareceu tão pouco entender a questão, olhou para a Madalena, a minha filha de dois anos, e levantou-se. Parecia agradecer-lhe com os olhos enquanto puxava, sem perceptível critério, a senhora, desta vez, para perto de uma fonte que há no parque.

O menino sabia que a minha Madalena não é só uma Madalena. E eu sabia que tinha algo a fazer. Fui perto dos rapazes perseguidores, futuros colegas do Renato, e disse: “Ei bebezada, sabem quem é o pai daquele rapaz ali? Sim! Esse mesmo! É o homem-do-saco! Cuidado com o que andam por aí a fazer: ainda vão parar lá dentro e nunca mais há brincadeira!! Entenderam!?”. Depois, despedi-me do escorrega, rufia de alma cheia, com sentimento de missão  cumprida. Logo a seguir, apertei a Madalena contra mim, em abraço de colo que reconforta, verdadeiramente, só quem o dá, e desejei que ela fosse, sempre,  apenas uma simples Madalena, como as outras centenas, ou milhares ou milhares  de milhão, e nada mais do que isso… Humanos de verdade sofrem muitíssimo  num mundo cada vez menos humano! Por essa razão, talvez estejam em  manifestas vias de extinção. Ou já extintos, até! Não sei. Sei que o Renato deu-me  força. É tudo por ele e por quem nunca teve, nem terá, o privilégio de ter voz!  Tudo! A justiça, a verdade, o dia-a-dia, o futuro, tudo!

Aquele menino, de boca pequena, mas coração gigante, merece que esta história  seja conhecida. Afinal, existem infinitos Renatos no mais fundo de nós.  Perseguidos e ofendidos à procura da sua eterna Madalena que tem um só nome:  amor!

PS: tenham cuidado “bebezada”, o homem-do-saco anda por aí!

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