observador.pt - 9 ago. 14:04
O que falta para o crioulo ser a língua oficial de Cabo Verde?
O que falta para o crioulo ser a língua oficial de Cabo Verde?
A implementação no sistema educativo tem gerado controvérsia e há quem resista à padronização. Após 50 anos de independência, que caminho está a fazer esta língua tantas vezes marginalizada?
No ano em que se comemoram os 50 anos de independência, um dos debates mais acesos em Cabo Verde gira em torno da oficialização da língua. O crioulo, como sempre foi conhecido, está a transformar-se na língua cabo-verdiana. O processo tem gerado resistências e controvérsias, tanto pela maneira como tem sido implementado no sistema educativo como pelo simbolismo anti-colonial que acarreta.
A questão é muito antiga e está até institucionalizada há mais de 30 anos. Desde a Constituição da República de 1992, que define apenas o português como língua oficial, que o artigo nono prevê que o estado cabo-verdiano deve promover “as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Ao longo dos anos, foram dados vários passos nesse sentido, uns mais práticos, outros mais simbólicos — por exemplo, a língua é já considerada Património Nacional Imaterial. Mas a discussão a que hoje se assiste assenta sobretudo na maneira como tem sido oficializada nas escolas.
Em fase de “construção pedagógica”, a disciplina opcional de língua e cultura cabo-verdiana foi criada no ano letivo de 2022/2023. A 21 de fevereiro de 2025, no Dia da Língua Materna, foi lançado o primeiro manual escolar de Língua y Kultura Kabuverdiana, para o décimo ano de escolaridade, com um “caráter experimental”. Tem sido esse o principal motivo da presente discórdia.
Cada uma das nove ilhas populadas de Cabo Verde — existe uma décima, Santa Luzia, que permanece inabitada — tem a sua própria variante da língua. Para ultrapassar esta diversidade linguística, que embora rica tem representado um obstáculo neste processo ao longo das décadas, o grupo de trabalho designado pelo Ministério da Educação criou uma ortografia pan-dialetal — ou seja, uma variante artificial da língua que alegadamente ultrapassaria eventuais rivalidades entre as variantes das ilhas mas que, por não ser naturalmente falada por ninguém, também se tornou ela própria um obstáculo e um fator de divergências, até porque no passado mês de junho já houve uma prova nacional da disciplina tendo por base o manual.
“Esta versão nova da língua é completamente artificial, só existe para quem a construiu. As pessoas não a falam, não se reveem nela e além disso é inconstitucional porque a normalização de qualquer língua não se faz num manual escolar, em experimentação, que aparece em fevereiro e os alunos são avaliados em junho”, argumenta, em declarações ao Observador, a professora de línguas e investigadora académica cabo-verdiana Ana Josefa Cardoso, que vive há muitos anos emigrada em Portugal e que tem estudado este assunto. “A prova nacional foi completamente aberrante.”
Entre 2022 e fevereiro de 2025, os professores da disciplina tinham orientações para começarem o ensino com a variante local, de cada ilha, para depois irem introduzindo elementos das restantes variantes — nomeadamente, da variante da ilha de São Vicente para o conjunto de ilhas do Barlavento, e da variante da ilha de Santiago para o conjunto de ilhas de Sotavento.
“Acabam por ser variantes de referência, que agregam. Mas a forma atabalhoada como o manual foi introduzido nas escolas, enfim… Muitos professores nem sequer tiveram qualquer formação para começarem a trabalhar. Começaram por dar as aulas com base naquilo que tinham à disposição — as gramáticas e dicionários que existem — mas o que têm estado a fazer desde 2022 pouco ou nada tem a ver com o que está neste manual. Esta nova variante representa, de alguma forma, um retrocesso nos passos que estavam a ser dados.”
Têm sido muitos os intelectuais ligados à língua, entre escritores, investigadores académicos e professores, a insurgirem-se contra esta medida. Aliás, as recentes queixas do poeta José Luiz Tavares — que classificou o manual como “um atentado grave e uma aberração linguística”, mostrando intenções de interpor uma ação judicial — levaram mesmo o Ministério da Educação de Cabo Verde a emitir um comunicado, que sublinha tratar-se de um manual numa fase “experimental”.
Ana Josefa Cardoso conta que o manual adotou esta variante pan-dialetal com a ideia de “convergir a diversidade” e de prever as tendências futuras da língua. “Por exemplo, prevê-se que em várias palavras haja a queda das vogais, então aqui já caíram. Mas não me parece coerente que na escola se utilize uma escrita para a qual os alunos não têm uma base… Se alguém for procurar num dos dicionários que já foram publicados, algumas destas palavras não existem. Quem criou o manual também teria de criar o seu próprio dicionário, a sua própria gramática… E nada disso existe. Parece que tudo o que está para trás foi ignorado. E o problema é que nem os próprios professores dominam esta escrita.”
O facto de esta variante pan-dialetal também estar a ser associada sobretudo às variantes das ilhas do Barlavento também se tem tornado um ponto de discussão. “De acordo com as autoras do manual, esta variante não foi feita tendo em conta o número de falantes da língua — sendo que dois terços da população estão no Sotavento — mas com critérios geográficos, porque o Barlavento tem mais ilhas.”
A professora e investigadora rejeita encarar a polémica como sendo uma questão do sul contra o norte, mas argumenta que as rivalidades históricas entre as duas partes do arquipélago se tenham “reacendido” com este debate em torno da língua. “Muitas das pessoas que se têm posicionado contra o manual são de Santiago, do Sotavento. Então muita gente acha que é por serem de lá que têm esta posição. Isto veio reacender as guerrinhas e a desunião entre norte e sul, que já estavam apaziguadas de alguma forma, e também é isso que tem impedido a oficialização. E parece que, agora, na opinião pública, as pessoas estão contra por serem desta ou daquela ilha, deste ou daquele partido político… Não, não tem a ver com isso. O problema é a ideia de impor pela força uma coisa que é artificial, isso é que me preocupa.”
Uma língua que é estudada desde o século XIXPor todo o mundo encontramos diferentes crioulos — são idiomas orgânicos que derivam da fusão de mais do que uma língua, muitas vezes da língua de um estado colonizador e das diferentes línguas nativas que já existiam em determinado território. No universo da lusofonia, tanto encontramos crioulos de origem portuguesa em Cabo Verde como na Guiné-Bissau, em São Tomé e Príncipe, na Índia, na Malásia, na Indonésia, em Timor-Leste, em Macau ou mesmo nas ilhas neerlandesas das Antilhas, como Curaçau, Aruba e Bonaire.
No caso de Cabo Verde, o arquipélago na costa ocidental de África estava desabitado quando os navegadores portugueses lá atracaram no século XV. Graças às suas terras áridas e escassos recursos minerais, os portugueses não conseguiram explorar plantações intensivas nas ilhas, mas devido à sua privilegiada posição geográfica fizeram delas um dos principais polos para outro dos mais lucrativos negócios de então: o comércio transatlântico de escravos.
Os crioulos de Cabo Verde, que evoluíram para se tornar na língua cabo-verdiana, têm feito exatamente o mesmo percurso que a sua população. Afinal, com mais ou menos misturas, os cabo-verdianos são os descendentes dos antigos escravos da costa ocidental de África e dos europeus que exploravam aquele território, sobretudo os portugueses. Isso faz com que a língua seja também uma mistura entre o português e as línguas nativas dos povos africanos levados para Cabo Verde.
A relação com a língua foi atravessando diferentes fases ao longo dos tempos. Durante o regime colonial, foram vários os intelectuais portugueses que estudaram com fascínio os crioulos cabo-verdianos. Em 1880, no ensaio Os Dialectos Românicos ou Neo-Latinos na África, Ásia e América, publicado no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Francisco Adolfo Coelho estudava diferentes crioulos de origem portuguesa, destacando em Cabo Verde a língua falada na ilha de Santo Antão.
Meia dúzia de anos depois, era publicado um Esboço de Gramática Crioulo-Guineense, da autoria de António da Silva Maia, com o objetivo de descrever a língua falada na Guiné-Bissau mas que também incluía exemplos, observações e comparações com os crioulos de Cabo Verde, até porque havia muitos cabo-verdianos a viver e a influenciar a cultura local da Guiné-Bissau. Terá sido uma das primeiras tentativas de sistematizar a língua.
Já em 1933, o intelectual cabo-verdiano Pedro Cardoso defendia o crioulo equiparando-o com o mirandês ou com os regionalismos açorianos, fazendo questão de muitas vezes publicar os seus escritos — livros, artigos de jornal, sonetos — tanto em português como em crioulo cabo-verdiano.
Se por um lado foi alvo de estudo e até de apropriação pelo regime colonial português, desejoso de enaltecer a pluralidade cultural das suas colónias — sobretudo daquelas que tinham sido muito literalmente fundadas pelo regime — também foi muitas vezes encarada como uma língua menor, tal como outras práticas culturais locais mais associadas às raízes africanas daquela população. Por exemplo, era proibido falar-se crioulo nas escolas cabo-verdianas, onde se pretendia ensinar e incentivar o uso do português. Embora a grande maioria do vocabulário cabo-verdiano seja proveniente do português, a gramática é significativamente diferente e mais influenciada por línguas africanas, sendo que também existem discrepâncias no alfabeto.
“Os primeiros estudos foram feitos por colonizadores portugueses que queriam entender a língua”, confirma, ao Observador, a antropóloga cultural brasileira Márcia Rego, professora na universidade norte-americana de Duke, que estudou com profundidade a história e identidade cultural de Cabo Verde, publicando, entre outros trabalhos, o livro The Dialogic Nation of Cape Verde: Slavery, Language and Ideology (2015).
“Depois, tornou-se uma posse de Portugal, o crioulo foi representado como sendo uma faceta da portugalidade. Mais oficialmente, depois foi visto como um dialeto — existia aquela hierarquia de o crioulo estar subjugado ao português. Só com a independência é que apareceram estudos linguísticos aprofundados que demonstram que o crioulo é uma língua com a sua própria gramática, que não é um dialeto. Aí é que o discurso se começou a tornar diferente.”
Ao longo dos anos, desde a independência de 5 de julho de 1975, foram dados vários passos no sentido de oficializar a língua. “Por exemplo, quando a Assembleia Nacional de Cabo Verde passou a transcrever os discursos dos políticos em língua cabo-verdiana, foi um ponto marcante para se falar mais seriamente sobre estas questões da oficialização, da normalização e da padronização”, aponta Ana Josefa Cardoso.
“Só que ainda há muito trabalho por fazer. O português também não é igual em todo o lado, não é? Só que, no caso do português, esse processo já foi feito há muito tempo e o padrão tornou-se sobretudo o português falado entre Lisboa e Coimbra, porque também eram as regiões mais académicas, das universidades.”
O cabo-verdiano enquanto “língua da intimidade e da subversão” e o português como “língua da elite”Quem visita hoje Cabo Verde só se depara com o português em letreiros, informações no espaço público ou na comunicação social, mas toda a prática da língua e comunicação no quotidiano é feita usando o cabo-verdiano.
“Na primeira vez que lá estive, há 30 anos, achei logo que era uma coisa esquizofrénica, porque tudo era escrito em português, mas ninguém falava português”, relata Márcia Rego. “Nos jornais, nos sinais da rua, estava tudo em português, mas não se ouvia português a não ser que se entrasse num tribunal ou num sítio mais oficial. Uma vez fui a um mercado e perguntei às vendedoras onde conseguia encontrar um livro para aprender crioulo: elas riram-se na minha cara, disseram que não havia livros de crioulo, que aprendiam com a vida. E naquela mesma semana foi lançada a gramática do Manuel Veiga.”
É uma descrição que pode soar estranha a um leitor português que conta com uma língua padronizada e enraizada há tantos anos, mas basta olharmos para a nossa própria história para encontrarmos paralelismos. Durante vários séculos em Portugal, o latim era a língua institucional, da escrita, da Igreja e das universidades; o português era a forma como as pessoas comuns, no dia a dia, usavam o latim. Esta versão pobre da língua do Império Romano acabou por se tornar na língua padrão, mas durante muito tempo foi uma língua vulgar derivada do latim que era usada pelo povo.
Se hoje o debate em Cabo Verde, sobretudo nos círculos mais intelectuais, tem a ver com a forma como se está a oficializar a língua; durante muito tempo — e, ainda, para muitos cabo-verdianos — a questão esteve mais relacionada com a pertinência dessa decisão.
“Tem a ver com a nossa história”, diz Ana Josefa Cardoso. “Porque a língua sempre foi marginalizada, parece que é uma coisa exótica ou folclórica. Existe um conservadorismo, uma mentalidade que acredita que se a língua cabo-verdiana for ensinada na escola pode prejudicar a aprendizagem do português, o que também já está provado que não é verdade.”
Ana Josefa Cardoso explica que, apesar de, supostamente, o português ser a língua utilizada na escola primária para explicar as diferentes matérias escolares, torna-se inevitável usar a língua cabo-verdiana — a língua que as crianças de facto conhecem e que usam em casa — para explicar os conceitos ou a própria aprendizagem do português.
“A língua da escola supostamente seria o português, mas na sala de aula isso não acontece totalmente. Porque se os professores quiserem efetivamente passar os conteúdos, muitas das vezes têm de recorrer à língua materna para poder explicar até o próprio português. Portanto, a língua materna tem estado na escola de uma forma marginal, sem se assumir a sua presença, mas ela tem estado sempre lá. E também sabemos que o facto de o português ser a língua só das quatro paredes da sala de aula faz com que as pessoas tenham um discurso limitado no português, porque toda a gente sabe que os discursos de sala de aula são fabricados, não são contextos reais de comunicação. Não é a língua do dia a dia, não é a língua do intervalo, não é a língua das brincadeiras.”
Durante as suas investigações, Márcia Rego deparou-se com esta realidade em várias dimensões da sociedade cabo-verdiana. “Lembro-me de entrevistar padres, que obviamente faziam a missa em português, e depois eu perguntava-lhes: ‘então e a confissão?’ ‘Ah, essa parte é em crioulo’. Porque é a língua da intimidade. E não é só isso: também foi sempre uma forma de subverter. As piadas, os comentários sobre o poder e os colonizadores, até hoje as críticas políticas, acontecem em crioulo. Uma das coisas que complicam a oficialização é que o crioulo resiste a ser regularizado. Historicamente, foi a língua da oposição. E é algo que se reflete em tudo: por exemplo, muitos cabo-verdianos têm um nome português, mas depois têm uma alcunha, um ‘nominho’, mais perto do crioulo. Há sempre uma versão informal para tudo, em diferentes níveis culturais.”
Márcia Rego acredita, por isso, que o processo para que o cabo-verdiano se torne “verdadeiramente” uma língua oficial, com o mesmo peso do português, “vai demorar”.
“Por muitos séculos, o crioulo foi considerado uma corrupção do português, não era nem considerado língua. E muitos dos próprios cabo-verdianos consideram o crioulo uma língua que não vale tanto, é algo que está muito enraizado”, aponta. “A questão da língua é uma metáfora perfeita para um dilema, uma ambivalência que está presente em muitas questões da sociedade cabo-verdiana: existe uma resistência a ser-se considerado africano e, ao mesmo tempo, sabem que não são exatamente europeus. Isso também aconteceu com a bandeira de Cabo Verde. Depois da independência fez-se uma bandeira bem africana, com as cores comumente usadas, com o milho. Nos anos 90, adotou-se uma bandeira que se parece com a da União Europeia, com o azul e as estrelas em círculo.”
Há ainda outra camada a acrescentar às questões sociais em torno da língua. Ainda hoje, o português é uma língua com um estatuto de elite, algo que acaba por também pesar nas circunstâncias que têm moldado o processo de oficialização da língua cabo-verdiana. “Não há melhor coisa que a língua cabo-verdiana para exprimir a cabo-verdianidade”, acredita Márcia Rego. “Mas o português é um símbolo de estatuto, porque quem teve uma educação mais formal fala bem o português. Toda a gente fala crioulo, mas nem toda a gente fala português. Então existe uma tradição literária em português, uma elite intelectual que fala super bem a língua e que beneficia desse estatuto. E é essa mesma elite que estuda o crioulo como uma língua independente. É algo complicado de gerir e de lidar.”
Ana Josefa Cardoso concorda que o status quo em relação ao português como língua privilegiada também foi um fator que pesou na demora de o país aceitar a sua língua materna como oficial.
“Enquanto for exclusivamente em português, há sempre um grupo que tem mais benefícios, que são aqueles que já têm acesso a determinadas coisas. A capacidade que alguém tem de comunicar e de argumentar na sua língua materna é diferente de fazê-lo numa outra língua. Se houver uma reunião e a língua de trabalho for o cabo-verdiano, há muita participação, toda a gente fala, não há receio. Se for o português, muito pouca gente participa. Porque o português aparece muitas vezes como aquela língua onde estamos constantemente a ver quem é que erra, porque há pessoas a reparar nos erros que os outros dão para minimizar e ridicularizar, é algo patético que faz com que as pessoas se inibam de falar português. Continua a ser olhado como uma língua de elite. Portanto, há aqueles que têm o seu português e que fazem questão de o usar para exibir e mostrar que sabem falá-lo. Tem a ver com a nossa história e ainda não aprendemos a valorizar aquilo que é nosso.”
A vitalidade da língua cabo-verdiana na diáspora — com grande força em PortugalÉ impossível não pensar na vasta diáspora de Cabo Verde quando se discute ou reflete sobre um tema tão culturalmente estrutural para a identidade da nação. Para os pouco mais de 500 mil habitantes que vivem no arquipélago, existem 1,5 milhões de cabo-verdianos emigrados pelo mundo, sem contar com os muitos descendentes que já não têm a nacionalidade. A escala da diáspora é tão grande, no contexto de Cabo Verde, que ela própria representa uma influência social e cultural com grande expressão. E é aí que se encontra uma chave essencial para decifrar as questões da língua cabo-verdiana e da relação deste povo com a língua portuguesa. Por um lado, as comunidades cabo-verdianas dispersas pelo planeta mantêm uma forte ligação à sua cultura e tradições, onde se inclui a prática da língua.
“Não tenho estatísticas, mas cheguei a iniciar um estudo com a comunidade cabo-verdiana de New England, perto de Providence, onde vive a maior parte dos cabo-verdianos nos Estados Unidos, e conheci crianças da terceira geração, netos dos emigrantes, que falavam fluentemente crioulo com os pais”, conta Márcia Rego. “Muitas vezes isso não acontece com outras nacionalidades, mas é uma coisa que é muito mantida no caso de Cabo Verde, o crioulo é muito forte na diáspora.”
Já Derek Pardue, antropólogo cultural e investigador académico norte-americano que conduziu estudos de campo em Lisboa, nos Estados Unidos da América, nos Países Baixos e na Dinamarca junto das comunidades cabo-verdianas, considera, também em declarações ao Observador, que o “crioulo de Cabo Verde é definitivamente um elemento identitário” para todas estas pessoas.
“No pós-independência e após a queda do regime de Salazar, os cabo-verdianos foram o povo que manteve e cultivou mais esse valor da sua língua e identidade. Por exemplo, os angolanos raramente mantêm uma pluralidade linguística na diáspora. Eles falam português em Portugal, não falam umbundu ou kikongo. Por isso, acredito que o crioulo cabo-verdiano tem sido uma maneira importante de os herdeiros de Cabo Verde manterem uma ligação ao arquipélago, mesmo quando, como muitas vezes acontece, não conseguem voltar às suas ilhas-natal.”
No exemplo paradigmático da diáspora, o povo cabo-verdiano mantém sempre a sua natureza bilingue, mas não como se poderia esperar — o crioulo ou a língua cabo-verdiana é aquela que é usada entre a comunidade, a língua de casa e da intimidade, mas a segunda língua que é adotada é a do respetivo país onde se encontra essa comunidade.
“A diáspora cabo-verdiana que está espalhada por esse mundo fora — nos Estados Unidos, em França, na Holanda ou na Suécia — não sabe falar português, não tem de saber português e não precisa do português. A língua que une efetivamente os cabo-verdianos é a língua cabo-verdiana”, lembra Ana Josefa Cardoso.
Márcia Rego comenta no mesmo sentido: “Quando estive com a comunidade cabo-verdiana dos Estados Unidos, percebi que não falam português. O mesmo acontece nos restantes países. Ou é o crioulo ou a língua local. Então, o português perdeu essa força e estatuto, eles não precisam do português. A vida institucional e oficial é feita na língua nacional desses países onde as comunidades estão emigradas, seja o holandês ou o inglês”.
A exceção é, obviamente, Portugal. Um país que alberga uma grande comunidade cabo-verdiana, uma diáspora onde — nota Ana Josefa Cardoso — se “cristalizou de algum modo” a língua cabo-verdiana, porque as pessoas a “tentam conservar” e mantêm a maneira de falar a língua que trouxeram do arquipélago há várias décadas, ou que ouviam os seus pais e avós falarem.
Ainda assim, no caso de Portugal existe outro fenómeno que vale a pena ter em conta. Embora não existam estudos com dados e números concretos, a língua cabo-verdiana — aqui numa mescla de diferentes variantes — será uma das línguas mais faladas no país, sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa, onde está concentrada há várias décadas a maior parte dessa comunidade. Além de os cabo-verdianos e de os seus descendentes terem sempre continuado a prática da língua, há muitos portugueses — de origem portuguesa — que aprenderam a falar crioulo por terem crescido junto destas comunidades.
Outrora uma língua marginalizada e invisibilizada, o crioulo cabo-verdiano está hoje no espaço público e num patamar mainstream em Portugal como nunca antes — isso nota-se, em grande parte, na música. Artistas como Dino D’Santiago, Julinho KSD, Lura, Nancy Vieira, Vado Más Ki Ás, Loreta ou Apollo G, entre tantos outros (como também Sara Tavares fez), sobretudo descendentes de cabo-verdianos, usam o crioulo para se expressarem nas suas letras, que passam nas rádios e são ouvidas por milhões de portugueses.
“A música é um meio poderoso de identificação cultural e de construção de comunidades, em grande parte porque a música cria significado através do afeto — emoções, sentimentos, afinidade estética — e não da racionalidade lógica”, acrescenta Derek Pardue, que publicou em 2015 o livro académico Cape Verde, Let’s Go: Creole Rappers and Citizenship in Portugal, precisamente focado nestas questões da identidade e da vitalidade da língua cabo-verdiana no contexto do rap feito em Portugal. “Então, quando o crioulo cabo-verdiano faz parte da base musical e da palete sonora, isso alimenta e faz aumentar a sua influência geral. Isso só aconteceu ainda mais com o desenvolvimento das plataformas de música”, que democratizou o acesso dos artistas aos meios de produção e aos seus potenciais públicos.
O fenómeno de artistas — como os rappers Mota Jr, Dezinho e Juana na Rap, o cantor David Pessoa da banda Fogo Fogo ou a cantautora Cristina Clara — portugueses de origem, que escolheram o crioulo para se expressarem na música, também demonstra a influência que a língua cabo-verdiana tem tido em muitas comunidades em Portugal.
“Acredito que o facto de haver portugueses brancos a aprender, a falar e a cantar em crioulo cabo-verdiano, demonstra a vitalidade da língua e também, em muitos casos, a popularidade do rap e dos seus vários subgéneros, que continua a ser um fator importante naquilo que se pode descrever como diálogo intercultural”, acrescenta Derek Pardue.
A musicalidade natural da língua também tem sido um elemento bastante referenciado por muitos dos seus intérpretes para escolherem o crioulo como língua artística. Mesmo artistas com outras origens africanas, como o luso-moçambicano Plutonio e o luso-angolano Slow J, já empregaram expressões em crioulo cabo-verdiano nas suas canções.
Para Ana Josefa Cardoso, o vigor da língua cabo-verdiana em Portugal e nas restantes comunidades fora do arquipélago prova que “a diáspora também deveria ser ouvida neste processo” de oficialização. “Quando houver um processo de padronização a sério, porque acredito que ainda não seja isto, a diáspora também deverá ser ouvida. Mas a oficialização é fulcral. As línguas têm história, memória, são vivas e o que não se registar pode morrer e desaparecer sem deixar rasto.”