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A reintrodução do lince-ibérico em Portugal foi um sucesso. E agora?

A reintrodução do lince-ibérico em Portugal foi um sucesso. E agora?

O lince-ibérico foi reintroduzido na natureza em Portugal há dez anos. São hoje 350 entre 2400. Com o fim do financiamento da UE e o aumento dos conflitos com a população, qual é o futuro da espécie?

“Está ali qualquer coisa. Estás a ver?” Tinham-nos dito que o lince-ibérico gosta de andar em sítios altos a dominar a paisagem, “como os gatos lá em casa”, por isso, era para o horizonte que olhávamos, atentos ao contorno dos cerros à nossa frente, quando, de repente, vemos uma sombra mexer-se lá ao fundo. Um vulto difuso dá dois passos e senta-se a olhar para nós. Temos tempo de avisar o jornalista espanhol ao nosso lado, ainda descrentes daquilo que víamos, e nada mais. Por coincidência, era o único na comitiva com binóculos: “Hay un lince allí. Acaba de esconder-se. Uau, que pasada! Ia a andar tranquilamente.”

Pedro Sarmento, coordenador e responsável técnico do programa in situ para a espécie em Portugal, chama-lhe “o Serengeti português” e a Herdade das Romeiras “não está a desiludir”. Há uns anos, andava Pedro encavalitado sobre o muro da ruína à nossa frente à procura de linces quando, no silêncio, irrompeu muito próximo um rosnado. “Estava a dormir em baixo, a meio metro de mim, e não o tinha visto”, recorda. Pelo caminho, já tínhamos avistado veados, gamos, uma águia imperial, grifos, dezenas de coelhos a correr pelos campos e muitas perdizes, algumas com perdigotos minúsculos.

A verdade é que tínhamos vindo a este vale da herdade, uma propriedade com cerca de 4000 hectares no concelho de Mértola, de exploração cinegética, mas também agrícola e pecuária, precisamente porque as probabilidades de avistarmos um lince-ibérico em estado selvagem seriam maiores. Mas sendo um animal esquivo, sobretudo nocturno, e pouco adepto do calor que já se fazia sentir, o momento tem tanto de golpe de sorte, como de sintomático.

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Em pouco mais de 20 anos, o lince-ibérico (Lynx pardinus) deixou de estar “provavelmente extinto em Portugal” para existirem cerca de 350 animais a viver em estado selvagem em território nacional, com subnúcleos populacionais em Mértola, Serpa e Alcoutim. Contabilizando as crias nascidas no ano passado, os últimos censos apontam para mais de 2400 linces na Península Ibérica — um número que levou a União Internacional para a Conservação da Natureza a passar a espécie do estatuto de “em perigo” para “vulnerável” na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, em Junho do ano passado.

O local também não podia ser mais simbólico. Afinal, foi nas Romeiras que tudo começou, há uma década, com a libertação do primeiro casal de lince-ibérico em Portugal.

“Já não reconheciam o lince”

“O doutor é louco por bicharada, eu é que, às vezes, tenho que cortar”, conta José Osório, gestor na Herdade das Romeiras há 35 anos, 11 para lá da reforma, enquanto seguimos numa volta de jipe pela propriedade. “Olhem ali as perdizes à sombrinha”, alerta, apontando cada animal que se cruza pelo caminho. O proprietário, Jorge Neto Valente, advogado português há muitos anos em Macau, “até tem um minizoo” noutra herdade. Não terá sido difícil convencê-lo a acolher nas Romeiras os primeiros linces-ibéricos reintroduzidos no país. “Negociámos com o ICNF algumas contrapartidas e aceitámos”, recorda Osório. “Tem corrido bem. A nível de criação do lince está toda a gente de parabéns.”

A herdade reunia as condições ideais para instalar o cercado de solta branda, um recinto de aclimatização ao novo território, com cerca de 1,5 hectares, onde os primeiros linces foram libertados. “Está numa zona onde temos a caça grossa, os veados, os gamos, e é uma zona riquíssima em coelho, além de ficar protegida das pessoas”, aponta. A Jacarandá e o Katmandu entraram a 16 de Dezembro de 2014 e as portas abriram-se definitivamente à liberdade a 3 de Fevereiro de 2015. Naquele ano, foram libertados dez linces-ibéricos em Portugal.

Foto Pedro Sarmento, coordenador e responsável técnico do programa in situ para a espécie em Portugal, mostra um crânio de lince-ibérico Paulo Pimenta

“Estive quase um ano só a acampar, a seguir linces 24 horas por dia”, recorda Pedro Sarmento, tido como o “pai” do lince-ibérico em Portugal, depois de ter começado como biólogo na serra da Malcata, em 1994, onde chegou a dirigir a reserva natural. Mal saiu do cercado, a Jacarandá teve um encontro imediato com uma raposa, que acabou por “sair a correr” do mato depois de ter havido “pancada de certeza”, conta. O Katmandu tomou o gosto aos gamos. Levou “uma semana” a comer o primeiro. “Comia até vomitar, às vezes”, recorda. Nem uma espécie nem outra já “reconheciam o lince como uma ameaça”.

Às tantas, Sarmento traz um crânio para nos mostrar. “O Katmandu viveu em liberdade dois anos. Depois, em princípio, o vizinho do lado, que se chamava Luso, limpou-lhe o sarampo, e nós descobrimos o cadáver passado para aí dois anos numa coisa destas, já todo mumificado”, conta, apontando a um dos abrigos no cercado de solta branda. “Ele desaparece e o Luso começa a aparecer aqui, portanto provavelmente deve ter havido um confronto entre os dois, ficou ferido, e veio morrer a um sítio onde se sentia seguro.”

Luso, um dos linces-ibéricos nascidos em cativeiro no Centro Nacional de Reprodução do Lince-Ibérico, em Silves, inaugurado em 2009, acabou por tornar-se um “animal importante”, porque “é antepassado de cerca de 160 linces que andam aqui”, aponta Pedro. “Teve 80 e tal filhos.”

Interconectividade das populações

Ao longo do fim-de-semana, subimos do Algarve ao Alentejo para visitar algumas das zonas onde o lince-ibérico se instalou e para conhecer o trabalho diário dos técnicos no terreno, as várias iniciativas implementadas, conquistas e desafios futuros. É a última visita de imprensa aos cinco territórios do lince-ibérico (Vale do Guadiana, em Portugal; Andaluzia, Estremadura, Castela-Mancha e Múrcia, em Espanha), e avança inevitavelmente em jeito de balanço, não só dos últimos 20 anos de políticas e programas de conservação do lince na Península Ibérica, como dez de reintrodução da espécie em Portugal, e cinco do programa LIFE LynxConnect. Da iminência da extinção para uma história de sucesso, até ao momento.

O LIFE LynxConnect, o quarto projecto aprovado pela Comissão Europeia para a conservação da espécie (o segundo a nível ibérico), arrancou em 2020 e acabaria em Setembro deste ano. Mas foi recentemente “prorrogado por mais seis meses”, até Março de 2026, devido aos contratempos causados pela pandemia, que deixaram o projecto momentaneamente “em banho-maria”, conta João Alves, técnico superior do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e coordenador do Plano de Acção para a Conservação do Lince-Ibérico em Portugal (PACLIP).

Dando continuidade ao LIFE Iberlince, que tinha como principal objectivo recuperar a distribuição histórica da espécie na Península Ibérica ao reintroduzi-la em novos territórios, incluindo Portugal, o LynxConnect tem procurado, sobretudo, aumentar a interconectividade entre os diferentes núcleos populacionais, para que os linces consigam mover-se mais facilmente entre eles, contribuindo não só para o aumento da população, como para potenciar uma maior variabilidade genética.

Foto Libertação do casal de linces Sidra e Salão, em 2022, em Alcoutim Daniel Rocha Foto No primeiro ano de reintrodução do lince-ibérico em Portugal foram libertados dez linces em Mértola Daniel Rocha

De acordo com Pedro Sarmento, o projecto está a dar resultados. “Confirmados, vieram quatro de Doñana para cá [um antes do LynxConnect], dois de cá para a Estremadura e um de cá para a serra Morena.” Mas é necessário melhorar os “corredores verdes” nesta triangulação transfronteiriça. O Parque Nacional de Doñana, na Andaluzia, ao qual estava reduzida a população de lince-ibérico, nos anos de 1990, juntamente com a serra Morena (menos de 100 animais no total), está a chegar hoje à sua “capacidade de carga máxima”. Mas, apesar de existirem movimentos de lá para Portugal, onde ainda existe margem para a população crescer, a viagem é “muito perigosa”, com muitas estradas e agricultura, contam-nos.

Esta é, por isso, uma das três vertentes da nova candidatura ao financiamento europeu do programa LIFE, que está a ser liderada pela Região Autónoma da Andaluzia e deverá ser entregue em Outubro. E revela bem duas das principais ameaças à conservação da espécie: perda de habitat, não só do lince como do coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus), a sua presa principal e base da alimentação (pelo menos 80%), e os atropelamentos.

Atropelamentos estão a aumentar

Os atropelamentos são, actualmente, a principal causa de morte não natural do lince-ibérico, correspondendo a cerca de 75% dos casos. “Tivemos 30 e tal até agora [em Portugal], mas 15 são em estradas secundárias”, sublinha Pedro Sarmento. Com o maior número de animais em estado selvagem, sobem também os atropelamentos. Em 2024, foram registados dez. Neste ano, o total já vai em oito, o que significa “uma média de pouco mais de um atropelamento por mês”.

No Algarve, os principais pontos negros são o IC27, a A22 e a estrada que liga as aldeias de Pereiro e Martinlongo, ambas no concelho de Alcoutim. “Depois temos tido em Mértola, que é a zona mais negra, na recta da Sela, e Serpa também tem um ponto negro”, enumera Paulo Dias, técnico do ICNF no Algarve. Acontecem, essencialmente, ao final da tarde e durante a noite. “A altura entre Outubro e Dezembro, Janeiro, talvez seja a mais crítica, porque as fêmeas começam a largar as crias e a entrar no cio, e começam a sair um bocadinho do seu território”, aponta.

Foto Sinal de trânsito criado para assinalar a presença de linces Daniel Rocha

Numa aplicação móvel interna, a equipa vai registando não só a localização dos machos identificados e das fêmeas que tiveram crias no ano passado, a vermelho e laranja no mapa, como dos animais mortos por atropelamento, a negro. Estes dados são depois entregues à Infraestruturas de Portugal, que os tem utilizado para “priorizar essas zonas” na instalação de sinalética nas estradas, na limpeza de bermas, construção de passadiços nas passagens hidráulicas por baixo das estradas, para que as crias mais pequenas consigam atravessar em segurança, mesmo quando o caudal está mais elevado, e construção de vedações.

O projecto mais recente, que deverá “começar ainda neste Verão”, corresponde à colocação de “redes mais altas, com o pescoço de cavalo virado para dentro”, de forma a assegurar que os linces não conseguem saltar as vedações em direcção à estrada, como acontecia anteriormente, conta Amândio Santos, engenheiro da Infraestruturas de Portugal. Serão colocadas em três zonas: na recta da Sela, a vedação já substituída vai passar de um para três quilómetros em cada berma; mais quatro quilómetros junto à aldeia do Pereiro; e um terceiro troço junto à ponte do Guadiana de Serpa. “Tínhamos projectado para esta empreitada cerca de 300 mil euros e acabámos por adjudicá-la por quase 500 mil euros”, revela. O LynxConnect financia 60% dos custos.

Waze à espera de medicamentos

Para alertar os condutores de animais a circular junto à estrada, e evitar atropelamentos, foi também estabelecida uma parceria com a plataforma Waze. “Foi uma ideia das Infraestruturas de Portugal, com base na nova tecnologia que os colegas que fazem a monitorização e o seguimento [dos animais no terreno] adoptaram há dois anos”, conta João Alves. Depois das coleiras com emissores de rádio e GPS, foram instaladas coleiras em animais com emissores LoRa, uma tecnologia de radiofrequência de longo alcance, utilizada sobretudo pelas frotas de automóveis, e que permite a comunicação a longas distâncias com um consumo mínimo de energia.

Foto Veterinário do ICNF Nuno Neves Pedro Sarmento/ICNF

No entanto, esta só funciona em estradas que tenham antenas próprias do sistema LoRa — se um lince com coleira entrasse numa faixa de 200 metros de cada lado da estrada, surgia no telemóvel do condutor um alerta à existência de um animal. A fase experimental contou com 12 coleiras, mas “acabaram-se as pilhas” e, neste momento, nenhuma está a emitir sinal. Existem 40 emissores prontos para serem colocados em novas coleiras, no entanto, há mais de um ano e meio que o ICNF não está a fazer capturas de linces em estado selvagem para rastreios porque o fornecedor contratado diz não ter stock de medicamentos necessários, revela João Alves. “Vamos ver se no final do ano conseguimos recuperar”, acrescenta Pedro Sarmento.

“O curioso é que este sistema foi inovador e temos França a pedir-nos, também para acautelar os atropelamentos de lince, não ibérico, mas boreal; e a Austrália a pedir-nos o mesmo para prevenir no caso dos coalas”, conta João Alves. Outro dos objectivos passa por ter no Waze sempre a sinalização dos pontos negros nas estradas, independentemente de existir ou não um lince com coleira nas proximidades.

Um trabalho invisível

A beleza do lince-ibérico e a sua semelhança aos gatos domésticos não terão sido indiferentes para o destaque mediático e a aceitação por parte das populações até agora, contribuindo para o sucesso da reintrodução da espécie em estado selvagem. Mas existe todo um trabalho diário, muito menos encantador, que tende a passar despercebido.

São as horas no terreno, a colocar e a verificar dezenas e dezenas de câmaras de fotoarmadilhagem, a mudar-lhes as pilhas e os cartões de memória; e depois a analisar milhares de imagens, entre fotografias e vídeos, em que apenas “1%, se calhar, apanha lince”, entre tantos outros animais selvagens captados pelas câmaras. E depois confirmar se, entre aquelas com boa definição, há imagens dos dois flancos do lince para ser possível identificá-lo. Aqui há truque: borrifar urina de lince junto à câmara para levar os animais a parar, a andar por ali a investigar — e a serem captados pela lente.

Foto Lince-ibérico com uma coleira de localização João Pedro Santos/ICNF

Nos últimos tempos, a inteligência artificial veio dar uma ajuda, primeiro na triagem das espécies e, mais recentemente, na identificação individual dos animais, através do padrão das manchas no pêlo, num novo programa utilizado a nível internacional, embora ainda “muito lento” no processamento das fotografias. Pedro Sarmento passa agora metade do mês em Espinho, onde reside, e metade no Vale do Guadiana. “Com as tecnologias isto evoluiu tudo e consegue-se fazer muito mais trabalho à distância.”

Gerir conflitos e habitat

A sensibilização e mediação junto das populações, dos caçadores e dos agricultores também é um trabalho contínuo. “No início, eram os conhecimentos técnicos de biologia que interessavam, era isso que conduzia o processo, agora é mais gerir situações de conflito”, reconhece Pedro Sarmento. Com o número de linces a crescer todos os anos, “já há muito tempo” que a equipa se vinha a preparar “para estas situações”. Ora com agricultores, devido “à predação sobre animais domésticos”; ora com caçadores, devido à competição pelo coelho-bravo nas zonas de caça (um lince come, em média, “um coelho de dois em dois dias”).

Na Cinelotão – Exploração de Actividades Agrícolas e Cinegéticas de Martinlongo, que com “834 proprietários” e “13 mil hectares” será a “maior zona de caça do país”, a visita é rapidamente atropelada pela revolta do gestor, Carlos Alcario, face à “falta de apoios”. Duas das primeiras fêmeas de lince-ibérico nascidas em estado selvagem reproduziram-se aqui, incluindo a primeira no Algarve, em 2019. Hoje existem na região nove fêmeas reprodutoras, seis delas a viver dentro da propriedade. “Mas estou enfadado, porque não nos ajudam em nada.”

As críticas remetem para um programa de apoio para agricultores e zonas de caça para a gestão de habitat, cuja candidatura acabou por não ser aprovada, uma vez que as terras da Cinelotão estão no Algarve, considerada região rica e, por isso, não abrangida pelo programa de financiamento do Governo, apesar dos esforços em contrário por parte do ICNF, de acordo com os técnicos do instituto.

Foto O lince-ibérico alimenta-se, sobretudo, de coelho-bravo Pedro Sarmento/ICNF Foto O primeiro censo ibérico sobre o coelho-bravo registou uma diminuição de 17,6% entre 2009 e 2022 Pedro Sarmento/ICNF

No âmbito do LynxConnect, foi feito também “um investimento de 220 mil euros em zonas de caça, com contratos de gestão com seis ou sete, no Alentejo e Algarve”, aponta Pedro Sarmento. Há cerca de dois anos que esse trabalho consiste, essencialmente, nesta gestão de habitat, com a recuperação da paisagem em mosaico, essencial para a perdiz e para o coelho-bravo e, consequentemente, para o lince. São feitas desmatações para criar zonas de sementeiras, “para ter alimento para os coelhos”, localizadas junto às áreas de mato, que é o abrigo (por vezes com construção de marouços ou tocas artificiais), e às faixas de pinhal, onde os coelhos se protegem de outros predadores, como as águias, aponta Paulo Dias enquanto passamos por várias áreas intervencionadas na Mata Nacional das Terras da Ordem.

“Isto é um trabalho que as associações de caçadores estão a fazer há mais de 20 anos. O que nós agora estamos a tentar é a incentivá-los a potenciar e a aumentar este tipo de trabalho, porque é uma coisa que pensamos dar algum resultado”, aponta o técnico do ICNF. A conservação e recriação destas zonas de interface tornam-se mais essenciais quando os números de coelho-bravo em Portugal continuam em declínio. O primeiro censo ibérico sobre a espécie, divulgado em Junho deste ano, registou uma diminuição de 17,6% no total das regiões estudadas (Andaluzia, Castela-Mancha, Estremadura e todo o território português), entre 2009 e 2022.

Caçadores: benefícios e preocupações

Sem o apoio dos caçadores, a reintrodução do lince-ibérico na Península Ibérica, e em particular em Portugal, não teria sido possível. Das três federações portuguesas, apenas a Fencaça – Federação Nacional de Caça recusou fazer parte dos acordos firmados no pacto nacional para a conservação da espécie. Não há como fugir: é nas zonas de caça que há mais coelho-bravo. E se não está prevista a reintrodução do lince-ibérico em mais nenhuma região do país num futuro próximo é porque “a distribuição do coelho em Portugal está muito concentrada aqui”, aponta João Alves.

Na altura, José Osório estava entre os cépticos. O lince “é mais um predador” e já tinham “cá bastantes”. Mas hoje vê consequências positivas de partilhar o território — e a caça — com o lince. A quantidade de coelho-bravo “tem anos”, mas, no geral, “aumentou”, aponta. Como o lince afasta outros predadores que também se alimentam de coelho, entre raposas, saca-rabos e ginetas, “a taxa global de predação” acaba por diminuir, explica Pedro Sarmento.

Também os ataques aos borregos diminuíram. “Era uma aflição na parição das ovelhas. Ou se tinha cães bons ou tinha-se que deslocar as ovelhas de certas zonas para outras, para o pé de povoações e tudo, porque as raposas eram de mais”, recorda José Osório. Onde havia dez raposas, no entanto, “agora vê-se duas ou três”.

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Já os linces passaram a ser avistados “com frequência” na herdade, garante. “Se calhar, temos uma semana em que não se vê e, às vezes, há um dia em que se vêem dois ou três, em vários sítios.” Mas a observação de linces-ibéricos enquanto actividade turística, tal como já existem empresas a fazê-lo em Espanha, não parece estar nos horizontes. “A gente já pensou nisso, mas não vejo o doutor muito inclinado para isso”, revela Osório.

O futuro, no entanto, preocupa-o. Como a população de coelho-bravo está concentrada nesta zona do país, teme que as crias de lince, ao emancipar-se e procurar novo território, não encontrem lugares com alimento suficiente e tenham tendência a “voltar para onde foram criadas”. “Calculávamos ter um ou dois casais de lince por mil hectares. Isso não é nada”, aponta. “Mas a gente já deve ter uns oito ou nove casais aqui, agora. Daqui a uns anos, se calhar, temos 20, o que é muito”, reage.

Pedro Sarmento, no entanto, argumenta que “a população de linces controla-se pelos próprios linces”. São “extremamente territoriais” e a prova disso, aponta, é encontrarem-se “poucos animais com [mais de] sete ou oito anos” e, quando isso acontece, “normalmente estão carregados de cicatrizes”.

Indemnizações em breve

Também os ataques a galinheiros domésticos aumentaram — e a Paprika tornou-se símbolo indesejado disso, ao assaltar vários galinheiros junto a Corte de Sines (Mértola). Ainda foi translocada para a serra de Serpa, mas depois de ter voltado a atacar os galinheiros dos novos vizinhos, foi transferida para o antigo cercado de solta branda, sem uso desde que as libertações deixaram de se fazer ali. Ficou “na prisão dos que fazem mal”, como apelidava José Osório, quase dois anos, fechada e alimentada exclusivamente a coelho, para perder o hábito.

Quando os ataques são comunicados ao ICNF, a equipa fornece rolo de rede e arame ao proprietário para fortalecer o galinheiro ou desloca-se ao local para fazer esse trabalho e “tornar o galinheiro impenetrável a lince”, um animal “mais forte e mais esperto”, que “até telhas tira de cima do galinheiro para entrar”, exemplificava João Alves. “Houve galinheiros que refizemos completamente e [com] protecção eléctrica durante uns dias, normalmente é suficiente”, aponta Pedro Sarmento.

Foto Técnicos do ICNF apoiam no reforço de galinheiros domésticos Pedro Sarmento/ICNF

Também “já houve casos comprovados da morte de alguns borregos provocada por lince”, acrescenta João Alves, embora relate vários casos em que, após a denúncia e com os técnicos do ICNF no local, se verificou que o ataque tinha sido feito por outros animais, nomeadamente cães.

Para compensar os proprietários pelos prejuízos provocados, em caso comprovado de morte de animal doméstico causada por um lince-ibérico, está para ser aprovado pelo Governo um projecto de diploma que prevê um mecanismo de indemnização “semelhante ao que existe para o lobo”. A norma legal tinha passado “para a pasta de transição” com a queda do Governo e aguarda que “o novo ministério pegue no assunto”. Se “for aprovada neste ano”, ainda poderá “entrar em vigor” em 2025.

No entanto, para que a indemnização seja paga no caso de ataques a galinheiros domésticos, estes deverão estar previamente declarados na Direcção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV), o que “se calhar” não acontece em “90%” dos casos, nota João Alves, lembrando que esta obrigatoriedade deriva de legislação europeia, instituída devido à crise da gripe aviária. “Fizemos uma proposta de lei que é omissa em relação a esse aspecto, pode ser que consigamos que não haja essa exigência, mas não é provável.”

Experiências genéticas

Ainda que a gestão de conflitos com a população esteja a aumentar, esta “já está fora do âmbito do programa LIFE”, uma vez que a Europa considera “que há situações que têm de ser geridas, e financiadas, autonomamente pelos Estados”, relembra Pedro Sarmento.

A nova candidatura ao instrumento de financiamento criado pela União Europeia para o ambiente e acção climática foca-se, por isso, em três outras vertentes: a identificação de “corredores verdes”, como já referido; a reintrodução de linces na zona do centro e Norte da Península Ibérica, apenas do lado espanhol, e com a entrada nesta candidatura, pela primeira vez, das regiões autónomas de Madrid, Castela-Leão, Aragão e Catalunha; e “o incremento da variabilidade genética na população cativa”.

Foto Centro Nacional de Reprodução do Lince-ibérico, em Silves Público

Segundo João Alves, a candidatura estará “muito vocacionada para a parte genética”, uma vez que “o factor mais crítico em cima da mesa” é a “elevada consanguinidade dos animais”, dada a “pouca diversidade” genética que existe, por todos os linces-ibéricos derivarem dos “menos de 100 indivíduos que existiam na Andaluzia” antes dos programas de recuperação da espécie. “Costumo brincar ao dizer que são todos primos direitos.”

É uma vertente de carácter experimental e com potencial para gerar controvérsia. “Temos ADN conservado de indivíduos de um passado já bastante remoto e, eventualmente, através das novas ferramentas genéticas mais avançadas, poderíamos conseguir introduzir nos linces vivos alguns alelos perdidos”, para gerar variabilidade genética, avança João Alves, reconhecendo que “ainda estamos num começo e é muito questionável” a utilização destas ferramentas.

Para o coordenador do Plano de Acção para a Conservação do Lince Ibérico em Portugal, no entanto, é também tempo de começar a olhar para além do LIFE. Quando “tivermos entre 800 a 1000 fêmeas reprodutoras” em estado selvagem, a nível da Península Ibérica, é considerado que a espécie atingiu um “estado de conservação favorável” e deixa de ter o estatuto de “vulnerável” para passar a “não preocupante”. E “aí o LIFE deixa de financiar”, argumenta. Entretanto, face à ausência de referências ao LIFE naquilo que já foi divulgado da proposta para o próximo Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia, os ambientalistas fizeram soar o alarme para o possível fim do programa.

De acordo com o último censo anual da população, relativo a 2024, existem 470 fêmeas reprodutoras, mais 64 do que no ano anterior. “O que nós temos que encontrar é, através de outros programas ligados à agricultura, à actividade florestal, algumas linhas de financiamento para criar na mesma apoios, para que o lince e outras espécies possam ter condições de sobrevivência”, defende. Porque esta é uma história de sucesso — mas o lince-ibérico ainda está longe de estar totalmente fora de perigo.

Algarve, o território escolhido pelo lince-ibérico Foto

“O Algarve, e a zona de Alcoutim, é um território que foi escolhido pelos linces para viverem”, sublinha João Alves. Estavam os técnicos do ICNF ainda a preparar a zona para acolher o lince-ibérico e a ajudar na triangulação com o parque de Doñana, em Espanha, quando descobriram que, nas terras da Cinelotão, já havia uma fêmea com crias.

“Esta fêmea que aqui está é a Lagunilla, que foi libertada no primeiro ano”, conta Pedro Sarmento, apontando um vídeo no telemóvel. Nesse ano, nasceram duas ninhadas. Lagunilla teve quatro crias: NavarroNógadoNeblina e Nuvem. “Foram as primeiras crias de lince que vi em toda a minha vida.”

Nuvem foi a primeira a emancipar-se e, em 2016, “ainda antes de fazer um ano”, desapareceu. “Só em 2019 é que demos com ela. Estava aqui”, recorda. “O macho, que era o Orégão, que tinha sido libertado em Mértola, veio para aqui também e são eles que fundam este núcleo”.

As pessoas da terra iam repetindo que tinham visto um lince e os técnicos do ICNF começaram a procurá-lo. Descobriram a Nuvem numa casa abandonada. “O Pedro foi lá pôr uma câmara virada para a porta e ela deve ter sentido pessoas”, acrescenta Paulo Dias. Uns dias depois, agarrou na ninhada e, filhote a filhote, quatro, surge nos vídeos a mudá-los para outro sítio “numa sequência muito engraçada”.

Actualmente, devem existir nesta zona do Algarve “para aí 60 ou 70” linces-ibéricos, pelas contas de Pedro Sarmento. Entretanto, foram libertados dois casais e dois machos na região, já em 2022 e 2023, “essencialmente para baralhar a genética”, acrescenta João Alves.

Para tentar sensibilizar as populações das aldeias vizinhas para a chegada inadvertida do lince-ibérico à região, o programa LIFE LynxConnect integrou o projecto Aldeias do Lince, centrado nas povoações de Furnazinhas, no concelho de Castro Marim, e Pereiro e Giões, em Alcoutim. Foram criadas três esculturas em espaço público, numa parceria com o artista algarvio Tó Quintas e as gentes locais, um espectáculo de marionetas, um miniguia turístico pelas três aldeias, e um livro infantil.

[Fotografia: escultura do projecto Aldeias do Lince, em Giões. Duarte Drago/PÚBLICO]

Cinco linces, cinco histórias Foto Nossa, a primeira

Filha de Jacarandá e Katmandu, foi a primeira cria de lince-ibérico a nascer em liberdade em Portugal, sendo o primeiro nascimento em estado selvagem documentado no país em mais de 30 anos.

Mundo, o namorado espanhol

Nasceu em estado selvagem, no parque de Doñana, e fez cerca de 170 quilómetros até Serpa, sendo o primeiro lince-ibérico a provar que a ligação natural entre as duas populações poderia existir. Foi já em Serpa que acasalou com Malva, a primeira lince a sair de Mértola, onde tinha sido libertada, para o concelho vizinho. “O sinal dela estava sempre a dar dentro de uma casa e pensámos que estaria morta, mas fomos lá e vimos três crias.” O provável pai, Mundo, só foi apanhado nas câmaras mais tarde, e depois identificado como sendo um macho nascido em Doñana. “Teve vários filhos lá [em Serpa]. Depois uns filhos correram com ele e foi para Ciudad Real, a uns 300 quilómetros. Ainda lá está.”

Lítio, o ancião

É o lince libertado em Portugal mais velho ainda vivo, com 11 anos. Nasceu no Centro de Reprodução de Lince-Ibérico de El Acebuche, em Espanha, em 2014, e foi libertado no ano seguinte no Vale do Guadiana. Nesse ano foi até Huelva, já em Espanha, onde acabou por ser recuperado para tratar uma doença potencialmente fatal (leptospirose). Voltou a ser libertado no Vale do Guadiana e, anos mais tarde, avistado na Catalunha. Foi novamente trazido para Portugal, onde ainda vive.

Kahn e Kentaro, os viajantes da Ibéria

Os dois irmãos nasceram no centro português de reprodução em cativeiro de Silves, em 2013, e um ano depois foram libertados nos Montes de Toledo, em Espanha, mas nenhum quis ali ficar. Um rumou a sul, o outro a norte, e juntos são sempre o exemplo referido para provar a capacidade de dispersão e de adaptação da espécie, muito acima daquilo que os técnicos inicialmente acreditavam. Kahn, com emissor de GPS, tal como o irmão, atravessou zonas altas de montanha até La Jara, atravessou o Tejo, rumou a Cáceres, atravessou o Guadiana e veio regressar a Portugal, num percurso de 500 quilómetros. Já Kentaro andou pelas províncias de Madrid, Cuenca e Guadalajara, mais tarde subiu até Soria, Saragoça e La Rioja, foi até à Galiza e andou pela serra de Montesinho, já em Portugal, antes de morrer atropelado numa auto-estrada na zona da Maia, depois de uma deambulação de dois anos e três mil quilómetros.

Mel, o lince-Frankenstein

Ainda está vivo, mas parece “o lince-Frankenstein”, conta Pedro Sarmento. “Deve ter sido atropelado, mas sobreviveu.” Na última vez em que foi capturado, “o nariz saía”, tinha um olho “fora do sítio”, o crânio “todo metido para dentro”, dentes partidos e o corpo com “cicatrizes por todo o lado”.

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