observador.ptObservador - 10 ago. 01:00

A jurisprudência da ignomínia

A jurisprudência da ignomínia

A maioria de juízes conselheiros esticou-se e retorceu-se, deu piruetas e saltos mortais, para garantir um resultado político. O objetivo era claro: embaraçar e humilhar o Governo.

Foi com honras de conferência de imprensa, aparentemente reservada para momentos de significado político particular de que só algumas votações se podem revestir, que o colégio de juízes conselheiros do Tribunal Constitucional anunciou ao País o seu essencial acordo com as queixas do Presidente da República no que toca às mudanças na chamada “lei dos estrangeiros”. Com um presidente do TC menos exuberante e mais contido do que no passado, a encenação repetiu, no entanto, um alinhamento que o País já conheceu. Uns dias antes, num gesto que o define, o PR proclamara que a atual maioria seria “julgada” por isto. Ele esqueceu-se de que o julgamento político, quando nasce, nasce para todos – para ele inclusivamente. Desse julgamento, ainda que já não eleitoral, ele também não se livra.

Previsivelmente, o TC, em aliança mais ou menos tácita com o PR, resolveu abrir uma guerra contra o Governo e iniciar a resistência ao fascismo a partir das trincheiras abertas no Palácio Ratton. O assunto em mãos parecia proporcionar o guião com que as esquerdas em frangalhos, na sua imaginação essencialmente maniqueísta, gostam de sonhar: a humanidade contra a crueldade; a boa consciência da esquerda contra a opressão das direitas.

Com maiorias variáveis nas diferentes votações, o TC mostrou no acórdão que, no essencial, ainda que não inteiramente, concordou com as acusações do PR. Não digo “dúvidas”, nem “suspeitas”. Digo acusações de desconformidade com a Constituição porque Marcelo, co-patrocinador político do estado a que as coisas chegaram em Portugal em matéria de migrações, pretende derrotar politicamente o Governo neste assunto. Anulado o poder de ameaçar o governo com dissoluções da AR, Marcelo arrastar-se-á até ao final do seu mandato para conservar estas relíquias do governo de Costa, sem glória pessoal, nem proveito nacional. Erro dele que julga que ainda está em 2016.

Mas, por enquanto, é sobre o acórdão que é preciso falar. No exercício das suas funções públicas, em que exerce um inequívoco poder político, um juiz constitucional não é chamado a pronunciar-se sobre a bondade ou a eficácia das políticas públicas, cuja responsabilidade de preparação, execução e avaliação pragmáticas pertencem aos outros órgãos de soberania. Os juízes terão todos, sem exceção, as suas inevitáveis preferências políticas e ideológicas – e nalguns casos inflexivelmente partidárias –, para não dizer que têm diferentes percursos intelectuais e experiências de vida diversas. Daí que as interpretações constitucionais que levam a cabo, aqui ou noutras democracias, se dividam tanto. No atual acórdão, as interpretações divergiram profundamente. O ponto fundamental é que o respeito pela separação dos poderes, o reconhecimento de limitações ao que os juízes podem competentemente saber sobre a realidade que julgam e a proibição democrática de não usurpação de poderes que eles manifestamente não têm, impõem que sejam apresentadas boas razões, jurídica e publicamente válidas, que fundamentem as suas interpretações e as suas decisões. Quando isso não acontece, então o juiz torna-se um usurpador.

A maioria de juízes conselheiros esticou-se e retorceu-se, deu piruetas e saltos mortais, para garantir um resultado político. Fê-lo de diversos modos e em vários pontos diferentes da análise do decreto da Assembleia da República. Mas o objetivo era claro. Embaraçar e humilhar o Governo, contribuindo para a cenarização que a esquerda tenta construir depois das suas derrotas eleitorais: opor-se politicamente a uma tenebrosa aliança – real ou fictícia – entre o PSD no Governo e o fascismo (ou o Chega). Sobre o tema da imigração ou sobre outro qualquer.

No acórdão, o TC só podia corresponder às normas que o PR explicitara no seu requerimento. Foi então direito à questão do reagrupamento familiar e ao recurso de intimação administrativa, isto é, uma complexa questão de recurso aos tribunais administrativos para ultrapassar os congestionamentos decorrentes do caos a que os canais institucionais da imigração ficaram entregues com os governos Costa. No meio disto, ao Tribunal nem a realidade concreta da situação do País em matéria de imigração, nem do acesso dos imigrantes aos serviços do Estado, importou minimamente. Optou por uma retirada falsamente heróica e hipocritamente humanista para princípios e padrões que os restantes países europeus não acompanham. Teve o atrevimento de, em parágrafos avulsos, se pronunciar sobre a eficácia da política migratória do Governo para os objetivos politicamente determinados por quem vence eleições, não para quem exerce o poder judicial-constitucional. E, sem consciência de que se estava a supor técnica e politicamente superior ao Governo e ao poder legislativo para fazer o que os juízes não podem fazer – isto é, governar –, lá foram deixando com sentido político inequívoco aquilo que os juízes conselheiros vencidos Gonçalo Almeida Ribeiro e José António Teles Pereira chamaram, na sua declaração de voto, um “caderno de encargos” ao poder executivo.

Ao Tribunal também não importou a verificação elementar da congruência do direito europeu com as teses que quiseram fazer vingar.  Pior, invocaram jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que não corrobora as suas veleidades. Veleidades, de resto, que não podiam remeter para uma jurisprudência inexistente em Portugal, nem para um pensamento jurídico que a comunidade jurídica portuguesa ainda não teve a experiência para produzir. Criticaram a formulação das normas pelo Governo português que transcrevem quase palavra por palavra o texto das diretivas europeias relevantes que constituem autoridade explicitamente confirmada pelo próprio Tribunal. Ora a maioria de juízes disse que estava a interpretar deferentemente o direito europeu na análise das normas em apreço – o que fez erradamente –, ora sugeriu que estava a elevar Portugal muito acima dos padrões dos outros países europeus porque aqui moram uns juízes moralmente destacados dos restantes mortais, e que não se rendem a não se sabe bem que forças demoníacas. Flutuando entre uma coisa e outra morreu a consistência jurídica de uma decisão gravíssima.

Os absurdos lógicos, textuais, jurídicos e políticos no acórdão de 8 de Agosto de 2025 são tantos que não cabem num texto deste tipo. Desde o prazo de 2 anos como período de autorização de residência ser, na opinião do TC, excessivo – apesar de ser exatamente o período constante da directiva europeia (2023/86/CE) que baseia toda a legislação dos Estados-membros da EU e que já foi confirmada por jurisprudência do Tribunal de Justiça da EU – até aos requisitos de aprendizagem da língua portuguesa e adesão aos valores constitucionais da república serem interpretados como condição do reagrupamento, e não posteriores a esse reagrupamento, todos os sofismas valeram para obter o resultado político pretendido.

Para cima do assunto puseram a necessidade de o reagrupamento do cônjuge ser indispensável, dispensando qualquer tipo de prazo, e não apenas dos filhos menores; acrescentaram a acusação de que o período de 2 anos era cego, sem permitir condições excecionais de suspensão desse prazo, quando os artigos 122º, 123º e, finalmente, o nº 3 do artigo 106º da mesma lei proporcionam a chamada “válvula de escape” que os nossos perspicazes juízes juram não existir; tudo tinha de ser tentado e forçado.

No acórdão, o TC chega mesmo a invalidar uma norma por causa de uma interpretação prejudicial da palavra “designadamente”. Sim, exatamente isso que leu. A palavra “designadamente” teria, na cabeça da maioria dos juízes, um sentido gramatical equivalente ao exemplificar, ao invés da juridicamente obrigatória determinação taxativa, de requisitos a cumprir para obtenção do respetivo reagrupamento familiar, em que os membros do agregado familiar seriam aparentemente obrigados a cumprir um número infinito de obrigações impostas com prazer masoquista por governos maléficos de direita. Para cúmulo, na complicada questão da intimação administrativa, que gerou um colapso da resposta da AIMA e uma flagrante situação de iniquidade entre os imigrantes com acesso a advogados e aos que não o têm, fazendo, entretanto, estes juristas um negócio chorudo, a maioria do colégio de juízes ignorou a formulação do Governo que praticamente copia o artigo 20º, nº 5 do texto da Constituição da República Portuguesa.

O que o Tribunal Constitucional, aliado ao Presidente da República, fez não foi apenas usar o poder jurisdicional para se opor politicamente ao governo e a uma maioria parlamentar. Infelizmente, isso tem sido moeda corrente em algumas democracias ocidentais para prejuízo grave da qualidade e credibilidade das mesmas. Fez pior. Quis proibir um País de ter uma política de migração que contrarie o desastre recente, e que, curiosamente, nunca encontrou objeção destes nossos arautos do direito e da civilização. Nem sequer quando, por colapso dos serviços do Estado, o direito de reagrupamento familiar, o mesmo agora sacrossanto direito de unidade familiar, foi sistematicamente negado aos nossos imigrantes, impossibilitados de sequer iniciarem o procedimento burocrático, e que encontram no TC o único protetor ungido que lhes resta. A tentativa de regramento de tudo isto é inconstitucional. O colapso de tudo isto é uma vitória dos bons sentimentos humanitários.

Tal como no famoso livro do jovem Frederico, herdeiro do trono da Prússia, os juízes conselheiros portugueses também “ousam tomar a causa da humanidade contra um monstro que as quer destruir”. Mas sucede que eles não são reis absolutos da Prússia no século XVIII – nem sequer herdeiros de um trono desse tipo. Nem os seus inimigos são Maquiavel que devora criancinhas ao pequeno-almoço, mas antes uma maioria democraticamente eleita pelo povo português com a responsabilidade de exercer o poder legislativo e executivo, tendo em mãos um problema real e urgente, e que exigem constitucional e democraticamente respeito de um poder jurisdicional tal como está instituído no TC.

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