observador.ptobservador.pt - 10 ago. 03:13

“Pediram água, tabaco, comida. E gritaram Portugal”. Como foi o maior desembarque de migrantes no Algarve

“Pediram água, tabaco, comida. E gritaram Portugal”. Como foi o maior desembarque de migrantes no Algarve

Um empresário filmou a chegada dos 38 migrantes ao Algarve e falou com a família marroquina que trouxe um bebé de 1 ano. Passaram 5 dias no mar num barco de 5 metros. Terão morrido quatro passageiros.

Paulo Lourenço estava a olhar o mar ao final da tarde. Em agosto, a praia da Salema — encostada à ponta mais ocidental do Algarve — fervilha com a chegada de milhares de turistas, que enchem o areal. Mas, esta sexta-feira uma embarcação inusitada aproximava-se da costa e chamou a atenção do empresário do ramo turístico: um barco de madeira com dezenas de pessoas a bordo, algo nunca visto por aquelas paragens.

O dono de uma empresa de viagens turísticas (dedicada à observação de golfinhos) pegou na mota e acompanhou o percurso do barco, que acabou por chegar à Praia de Boca do Rio, a cerca de 500 metros em linha reta. De dentro da embarcação saíram 38 migrantes marroquinos, naquele que é o maior desembarque marítimo de migrantes ilegais de que há registo recente na costa portuguesa. Filmou o momento em que homens, mulheres e crianças pisaram terra e foi o primeiro a contactar com os migrantes.

“Falei com uma família que tinha uma criança de um ano. Disseram que vinham de Marrocos. Pediram-me água e tabaco. E também comida. Estava um casal na praia que lhes deu comida”, conta Paulo Lourenço ao Observador, revelando que alguns dos migrantes, ao perceberem onde se encontravam, “gritaram “Portugal!”. “Manifestaram alegria naquele momento, alguns agradeciam muito, de braços no ar, por terem chegado”, acrescentou.

A GNR de Vila do Bispo foi logo alertada e deslocou-se ao local acompanhada por elementos do Comando Local da Polícia Marítima de Lagos e pela Proteção Civil de Vila do Bispo. Perante o “estado de saúde débil dos migrantes” — como descreveu a GNR —, que apresentavam sinais de desidratação, foram ainda chamados bombeiros voluntários de Lagos e de Vila do Bispo e também o INEM, que lhes prestaram os primeiros cuidados e forneceram água e comida.

Viagem desde Marrocos terá durado cinco dias e foi “penosa”, diz a GNR

A viagem, desde a costa de Marrocos, terá durado cinco dias, segundo o relato feito pelos migrantes a Paulo Lourenço. “Achei estranho ver aquela embarcação. Quando chegou à praia teve uma viragem de cerca de 90 graus”, descreve o empresário, garantindo que, recorrendo ao frágil motor, os migrantes se dirigiram propositadamente para a praia da Boca do Rio (uma das mais remotas do concelho de Vila do Bispo), onde depois aguardaram a chegada das autoridades. Mas não ficou com ideia de que tivessem intenção de fugir, pelo contrário: “Chegaram ao estacionamento da praia, sentaram-se e ficaram à espera de ajuda”. Uma das mulheres a bordo contou-lhe que quatro migrantes terão morrido durante a viagem.

Os migrantes traziam a bordo telemóveis, mantimentos, mochilas com alguma comida e “pouco mais”, conta Paulo Lourenço. Ao Observador, o major Ilídio Barreiros, da Unidade de Controlo Costeiro e Fronteiras da GNR, acrescenta que traziam também algum dinheiro. Parte da carga (mantimentos, roupa e calçado) ficou no barco, que acabou rebocado — poucas horas depois do desembarque — para o porto de Olhão.

Os detalhes em relação à forma como decorreu a viagem são escassos. Oficialmente, a GNR diz desconhecer quanto tempo durou o trajeto a partir de Marrocos, e se houve vítimas mortais, mas Ilídio Barreiros sublinha que o estado de saúde dos migrantes “é representativo da penosidade da viagem”. “Estiveram expostos a condições meteorológicas adversas durante um período considerável”. Das 38 pessoas a bordo, quatro acabaram por ser encaminhadas para os hospitais de Faro e de Portimão. Três crianças (de 12 meses, oito e 10 anos) foram vistas na urgência de Pediatria do Hospital de Faro (tendo sido acompanhadas pelos respetivos familiares).

“Foi feita uma avaliação do estado geral de saúde por poderem estar desidratadas, mas a situação era estável”, disse ao Observador Geovanni Cerullo, adjunto da direção clínica da Unidade Local de Saúde do Algarve. Com queixas não especificadas, possivelmente associadas ao cansaço, um homem adulto foi assistido na urgência geral do Hospital de Portimão. Todos já tiveram alta.

Os 38 migrantes têm nacionalidade marroquina, segundo a GNR. A bordo seguiam 25 homens, seis mulheres e sete crianças. O passageiro mais velho tinha 44 anos enquanto o mais novo era o bebé de um ano.

Se o empresário Paulo Lorenço elogia a atuação das autoridades — que foram “rápidas” a chegar ao local e “trataram-nos muito bem” —, já uma habitante da aldeia de Budens (a zona urbana mais próxima, a cerca de três quilómetros da praia de Boca do Rio), critica a Polícia Marítima. “Não percebo como é que, detetando o barco, não o pararam. E tenha vindo até aqui”, disse a mulher, recusando ser identificada.

Apesar de a GNR não ter a certeza do ponto exato de origem da embarcação, o historial de desembarques de migrantes na costa algarvia (sete desde o final de 2019) aponta como origem mais provável a cidade marroquina de El Jadida, a sul de Casablanca, de onde saem frequentemente muitos migrantes ilegais com destino à Europa.

No caso dos 38 migrantes que desembarcaram em Vila do Bispo, a GNR não identificou nenhum líder ou comandante da embarcação — feita de madeira, com 5 metros de comprimento e um pequeno motor acoplado. A GNR vê com reservas a hipótese de estas pessoas terem pago a uma rede de imigração ilegal para chegar a Portugal. “Esse fenómeno existe mas não numa organização tão informal como esta e não numa embarcação com cinco metros”, realçou o major Ilídio Barreiros.

Câmara de Vila do Bispo montou pavilhão de campanha em menos de uma hora

Enquanto grande parte dos migrantes (a maioria jovens adultos) eram levados para o posto da GNR de Vila do Bispo, a Câmara Municipal montava uma operação logística no pavilhão multiusos de Sagres para os acolher. Em apenas 40 minutos, ainda na noite de sexta-feira, foram montadas 38 camas de campanha e levadas roupa (camisas, t-shirts), calçado e peluches, bem como comida, para o pavilhão. O kit alimentar disponibilizado pela Proteção Civil tem bolachas, sumo, leite, pão, patê, fruta e água. No espaço, que o Observador visitou, havia ainda variados produtos de higiene: pastas e escovas de dentes, pensos higiénicos e produtos para o banho.

O pavilhão encheu-se este sábado à noite, para receber os 38 migrantes, vindos do Tribunal de Silves, onde ficaram a conhecer a decisão do juiz de turno. Todos receberam ordem para sair de Portugal devido a “imigração ilegal por via marítima”. Têm agora até 60 dias para abandonarem o país, no limite de forma coerciva.

Levados para Silves antes da 10h da manhã deste sábado, foram identificados mas só foram ouvidos pelo juiz no período da tarde. Contaram apenas com a ajuda de um tradutor. O tribunal validou 31 detenções (os restantes irão a tribunal nas próximas 48 horas) e acabou por determinar a instalação de todo o grupo de migrantes num centro de instalação temporária (CIT), até estar concluído o processo de retorno ao seu país. O problema é que nenhum dos três CIT (situados em Lisboa, Porto e Faro) do país tem vagas disponíveis, pelo que os migrantes foram levados para o pavilhão multiusos de Sagres. O que acontece a seguir é uma incógnita. “Nestes situações, já tivemos pessoas instaladas no quartel dos bombeiros de Tavira ou nas instalações da Proteção Civil de Loulé”, recordou o major Ilídio Barreiros, da Unidade de Controlo Costeiro e Fronteiras da GNR.

Ao Observador, a presidente da Câmara Municipal de Vila do Bispo garante que o município disponibilizou de imediato toda a ajuda necessária e garante aos migrantes apoio pelo tempo que for preciso no pavilhão de Sagres. “Estamos disponíveis para os receber enquanto não houver uma solução para eles”, disse Rute Silva, ressalvando, no entanto, que a lei portuguesa tem de ser cumprida. “Temos uma lei, e tem de ser cumprida, porque entraram de forma ilegal no nosso país. Mas estas pessoas querem uma vida melhor, não vão arriscar as próprias vidas e dos seus familiares por nada”, realçou a autarca eleita pelo PS.

Migrantes podem sair de forma voluntária ou coerciva mas sempre sob coordenação das autoridades

Uma vez recusada a entrada em Portugal, os migrantes que desembarcaram no Algarve poderão abandonar o país de forma voluntária ou coerciva, mas sempre sob coordenação das autoridades portuguesas. “Eles viram recusada a entrada e poderão aceitar o retorno voluntário ao abrigo do programa da Frontex [a Agência Europeia da Guarda Costeira e de Fronteiras]” no prazo de 20 dias, detalhou o militar. Não terão, no entanto, liberdade para abandonar o local em que se encontram em Portugal de forma autónoma, uma vez que não poderão entrar durante pelo menos três anos em nenhum país do Espaço Schengen.

No caso de optarem pela saída voluntária, serão transportados por via aérea até Marrocos mas sem escolta. Caso não aceitem essa opção, serão alvo de um processo de afastamento coercivo, com um prazo legal de 60 dias que vai começar a ser tratado pela Agência para a Integração, Migraçoes e Asilo, que tem esta responsabilidade administrativa até 21 de agosto, passando, depois dessa data, para a alçada da PSP.

Questionado sobre a forma como os migrantes marroquinos reagiram à decisão do juiz de os expulsar de território nacional, o major Ilídio Barreiros explicou que a GNR — que tinha dentro do tribunal também elementos do própria Unidade de Intervenção — esperava uma reação mais “emotiva”, o que não aconteceu. “Quando o tradutor falou, esperávamos reações mais emotivas. Não foi o caso. Aceitaram“, relatou o militar. Como o Observador confirmou em Sagres, o Corpo de Intervenção de GNR foi mobilizado para o pavilhão multiusos, onde os migrantes vão permanecer na noite deste sábado, prevendo-se que se mantenha um contingente desta unidade no local para “garantir a segurança e para evitar a saída dos migrantes”.

Pelo menos 140 migrantes desembarcaram na costa do Algarve ao longo dos últimos seis anos, segundo uma contabilidade feita pela Lusa a partir das notícias publicadas desde 2019.

Em relação às razões que levaram estas 38 pessoas a arriscarem uma travessia pelo oceano Atlântico, o major Ilídio Barreiros afirma que a grande motivação foi económica: “Alguns tinham trabalho no seu país mas consideravam não ser suficiente e vinham à procura de uma vida melhor“.

Já na noite deste sábado, o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, afastou a possibilidade de os 38 marroquinos virem a formalizar pedidos de asilo, um regime que só poderá ser aceite em casos de perseguição motivada pela raça, religião, nacionalidade ou opiniões políticas no país de origem. “Neste momento não há pedido de asilo e não vale a pena especular sobre o assunto e sobre o destino”, afirmou o governante.

Em Olhão, à margem do festival de marisco, António Leitão Amaro destacou a atuação rápida das autoridades portuguesas, “todas, desde as policiais que fizeram a interceção, às de saúde e de integração, que fizeram o acompanhamento, a hidratação, a assistência médica necessária, tratando as pessoas com dignidade, até aos tribunais que decidiram rapidamente e concluíram pela ordem de afastamento do território nacional. E é isso que vai acontecer”.

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