publico.pt - 14 ago. 16:38
Em Locarno, à beira do lago, Le Lac é o cinema em estado puro
Em Locarno, à beira do lago, Le Lac é o cinema em estado puro
O filme do suíço Fabrice Aragno é um poema tonal de grande beleza que se destaca numa competição dividida entre utopias e sonhos, crueldade e inocência.
À medida que o Concurso Internacional do Festival de Locarno se aproxima do fim, cristaliza-se desde já o “pelotão” dos favoritos, mas também ganham força temas recorrentes na escolha da programação. Falou-se da inocência e da crueldade, do modo como nos posicionamos numa sociedade em que tudo nos parece exigir uma polarização a favor ou contra, em filmes que não são de terror mas metem muito medo (com o Dracula de Radu Jude como expoente mais inspirado dessa vertente). Falou-se dos fantasmas de mundos perdidos e das utopias de mundos melhores em obras que nos pediram que parássemos para ver, em filmes que ainda abrem espaço à esperança e ao humano (com Dry Leaf, de Alexandre Koberidze, e With Hasan in Gaza, de Kamal Aljafari, à cabeça).
No entanto, um dos mais belos filmes que nos foram dados a ver nesta competição 2025 de Locarno está fora do mundo, fora do tempo, fora do tema. Chama-se Le Lac, é um poema tonal paisagista sobre uma regata num lago suíço (que não é o Lago Maggiore à beira do qual Locarno se espraia), e não é de todo um documentário mas também não se pode dizer que seja uma ficção. O filme do suíço Fabrice Aragno, braço direito de Jean-Luc Godard na última fase da sua carreira, é um objecto orgulhosamente só, único, mesmo que reconheçamos nele tangentes a outros filmes que vimos nesta competição — sobretudo Dry Leaf — no modo como abandona a prisão da narrativa para construir uma experiência puramente sensorial que convida o espectador a parar e, apenas, desfrutar das águas do lago.
Antes disso, terá de se falar de um outro caso singular desta competição, que compartilha com vários outros a recusa de uma história definida com princípio, meio e fim. Desire Lines, do sérvio Dane Komljen, pertence à linhagem do filme de fantasmas — mas, neste caso, são absolutamente literais. Um homem que não consegue dormir segue obsessivamente o seu irmão mais novo pelos arredores de Belgrado. Ou assim o cremos: na verdade, Branko não tem irmãos, ninguém o vê, ninguém o ouve, já não pertence ao “nosso mundo”, urbano e preciso. Desire Lines é o registo da sua viagem para um “outro mundo”, rural e fora do tempo, e da comunidade que aí encontra, de seres já não humanos em comunhão directa com a vida entendida como uma energia.
O que impede o filme de Komljen de se transformar numa mera alegoria filosófica em circuito fechado, ou numa fantasmagoria esotérica, é o modo como a controladíssima construção formal revela apenas o estritamente necessário para manter o espectador preso à viagem de Branko entre os dois mundos. Desire Lines é um mistério existencial que se mantém permanentemente, e deliberadamente, além da compreensão racional, o que tem tanto de frustrante como de sedutor; não temos certeza do que vimos, mas sabemos que gostámos de fazer a viagem.
Voltamos assim, circularmente, à regata de cinco dias no Lago Léman que Fabrice Aragno filma em Le Lac. Aqui não há sequer nenhuma pretensão de narrativa tradicional: há um casal, interpretado pela actriz Clotilde Courau e pelo velejador profissional Bernard Stamm, e as memórias da sua vivência em conjunto, revividas durante a regata de cinco dias. Não há quase diálogos e não há de todo música; apenas os sons do barco a navegar, do vento a soprar, da calmaria e da tempestade, com uma epígrafe do filósofo Maurice Merleau-Ponty (sobre tornar a ausência presente) e uma citação de Heinrich von Kleist em “posfácio” (sobre a vida que não se escolheu mas que nos fala em permanência).
O resto, como costuma dizer-se, é cinema em estado puro, feito de olhares e gestos, paisagens e rostos: Le Lac é um filme exclusivamente no tempo presente, que parece fazer-se enquanto o vemos e nos deslumbra como quem não quer a coisa. O filme termina com uma dedicatória do mais cinéfilo possível: “para o Fredy” (Buache, 1924-2019, o lendário director da Cinemateca Suíça), “para o Jean-Luc” (Godard, evidentemente). Faz sentido: Aragno aprendeu com os mestres. Mas o que ele faz com isso é exclusivamente seu. E é lindíssimo.