Gonçalo Morais - 14 ago. 18:03
Trabalho suplementar, só (pago) a alguns
Trabalho suplementar, só (pago) a alguns
Veja-se o exemplo aqui ao lado da Polícia Nacional Francesa que paga naturalmente horas extraordinárias aos seus Polícias.
Perdoem-me a insistência, mas sendo um partidário e férreo constitucionalista, e um fervoroso democrata, não poderei deixar de assinalar e identificar cenários que incompreensivelmente se mantêm imóveis, inalterados e assimétricos, perpetuando e alargando (ainda mais) as diferenças de tratamento, e pior, o sentimento generalizado de párias perante o Estado. Infelizmente é assim que os Polícias se sentem quando percebem que o Estado e seus representantes, pese embora os qualifiquem como vitais à democracia, no final dia esta condição de especial não passa de uma qualificação vazia e que em nada os beneficia. Este sentimento, cada vez mais cristalizado no âmago do tecido policial, é particularmente nefasto e castrador da estabilidade que se exige em instituições que promovem a ordem, a segurança e a paz pública. Torna-se cada vez mais difícil convencer e atrair candidatos a futuras incorporações, quando o Estado pede cada vez mais, e dá cada vez menos. Mas vamos a factos para que os leitores não fiquem com uma ideia errada do que estamos a discutir.
Fala-se muito na necessidade de pagamento de horas extraordinárias a servidores do Estado que são forçados, em razão das suas funções, a ter que trabalhar muito para além do seu tempo de trabalho que é condição, como sabemos, de uma prestação de trabalho equilibrada que confronta este com o equilíbrio familiar do prestador. Ora, é a própria Constituição a dizê-lo, e a exigi-lo, sendo depois respaldado, com minúcia, pelo Código de Trabalho e Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (adiante LGTFP). É, por isso, de elementar justiça, que o prestador público, quando requisitado a trabalhar mais do que o horário de trabalho que lhe é ordinariamente fixado, que o seu labor extra seja devidamente compensado. É isso mesmo que as duas magnas cartas do direito laboral dizem, na LGTFP no seu artigo 162.º, e no Código de Trabalho, no seu artigo 268.º. E não se pense, para os mais desatentos, que esta prestação de serviço [suplementar] é coberta pelo dito Suplemento por Serviço e Risco nas Forças de Segurança. Este visa compensar os Polícias pela especial penosidade, insalubridade, risco e disponibilidade que devem ter para com o serviço policial, e por causa dele, não assegura, a título compensatório, as muitas horas que são obrigados a trabalhar, e, ao dia de hoje, cada vez mais por força (i) do aumento das competências legais, (ii) com a insuficiência de recursos humanos policiais e (iii) com concursos de admissão que ficam com vagas ao descoberto por falta de candidatos.
Ora vejamos, caso se pense que estamos a ir longe de mais no pedido, e respeito, pelo reconhecimento deste direito:
- O Corpo da Guarda Prisional aufere de horas extraordinárias para compensar a falta de recursos para salvaguardar condições mínimas de segurança e protecção nos estabelecimentos prisionais – conforme artigo 61.º do Estatuto do Corpo da Guarda Prisional;
- Os Polícias da Polícia Judiciária auferem, para além do pagamento de um suplemento de prevenção, do pagamento de horas extraordinárias que foram recentemente actualizadas – conforme Portaria n.º 10/2014, recém alterada;
- Os Inspectores da ASAE auferem igualmente horas extraordinárias, sendo o seu pagamento feito á luz dos valores estipulados pela LGTFP no seu artigo 162.º;
- Os Oficiais de Justiça assinaram ainda recentemente (2024) um acordo que permitiu constituir um Suplemento de Disponibilidade, pago a todos os Oficiais de Justiça, visando compensar o excesso [eventual] de horas extra, sejam elas realizadas ou não ;
- Os médicos recebem, desde há muito, horas extraordinárias para compensar as necessidades do Serviço Nacional de Saúde , tendo no ano passado sido reforçado com valorizações progressivas até 70% segundo o artigo 2.º dessa Resolução de Conselho de Ministros.
Haveria ainda outras certamente a evidenciar, mas para efeitos de compreensão, bem se percebe que os vários Governos viram (e bem) ao longo dos anos a necessidade de assegurar que serviços vitais do Estado, como a Saúde, a Justiça e a Segurança, fossem e sejam abrangidos e contemplados por medidas legítimas de pagamento da prestação extra de trabalho, não se tendo lembrado, pasme-se, das Forças de Segurança que continuam bastardamente a ser tratadas como secundárias neste domínio. O número não pode mais ser um falso problema ou óbice à implementação desta medida que é indubitavelmente necessária e de pleno direito de todos os Polícias que integram as Forças de Segurança.
A acrescer a este problema temos ainda a questão dos valores dos suplementos de turno que continuam por actualizar desde 2009, fixando tectos máximos que não vão além dos 176€ para os Oficiais e dos 155€ para os Agentes, violando os limites percentuais que derivam das LGTFP – cf. art.º 161.º -, aplicáveis por sinal, e a título de exemplo, na PJ – cf. art.º 4.º da Portaria 10/2014 -, e que o eram, outrossim, no extinto SEF, permitindo a obtenção legítima de acréscimos salariais acima dos 500€, consoante o regime de prestação de trabalho. Percebe-se bem o ganho [de trabalho] que os Polícias tiveram, e a perda [de direitos] que foi incrivelmente esquecida.
As Forças Armadas e seus militares que foram durante muito tempo esquecidos, conduzindo-as a um verdadeiro estado de anemia, viram finalmente a sua importância estratégica reconhecida, sendo valorizados condignadamente na sua condição, de tal forma que ainda esta semana o Diário de Notícias , citando o Instituto Nacional de Estatística, destacava aquelas como sendo as que sofreram o maior aumento salarial, não só por via da actualização do suplemento de condição militar (no mesmo valor do das Forças de Segurança curiosamente), como dos demais suplementos especiais de serviço e ainda as suas tabelas remuneratórias, isto tudo de uma penada. Haja vontade e a obra nasce.
Perante este retrato, penso que fica bem patente o fundo do problema, designadamente a perda de motivação que assola os profissionais das Forças de Segurança por acreditarem cada vez menos que o Estado se preocupa com eles na medida do seu valor e da sua importância. l
1 https://expresso.pt/opiniao/2025-07-14-ha-ou-nao-razoes-para-o-descontentamento-dos-policias-c283d2a7
2 https://www.publico.pt/2023/04/21/sociedade/noticia/valor-hora-extra-policia-judiciaria-vai-menos-duplicar-ano-2047100
3 https://soj.pt/o-acordo-assinado-pelo-soj/
4 https://www.simedicos.pt/fotos/legislacao/2024_07_12_decreto_lei_45_a_2024_suplemento_remuneratorio_trabalho_suplementar_194357841466950728e5b4d.pdf
5 https://snpps.fr/wp-content/uploads/2024/07/note_dgpn__campagne_indemnisation_hs_2024.pdf
6 https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/portaria/10-2014-571019
7 https://www.dn.pt/economia/sal%C3%A1rio-m%C3%A9dio-l%C3%ADquido-nas-for%C3%A7as-armadas-disparou-19-no-%C3%BAltimo-ano-total-nacional-subiu-7